devaneios que outrora se foram...

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Naquela manhã de domingo acordei mais tarde do que me era permitido; o galo já havia cantado três vezes e o bolo já estava guardado no fogão. Vovó e eu havíamos feito um bolo de fubá delicioso com amendoins e castanhas, então acabei dormindo mais tarde que o comum.

Desci a escadaria um pouco zonzo, quase como se eu estivesse caminhando sobre as nuvens rosadas do crepúsculo e que a qualquer instante elas fossem se dissipar ocasionando numa queda estrondosa em algum lugar do mundo, talvez eu caísse num chiqueiro, me sujaria muito com certeza... talvez eu caísse no Oceano Pacífico e me afogasse ou talvez que sabe na floresta amazônica e descobrisse uma civilização perdida; Caipora não se zangaria de mim, ia cuidar direitinho da mata.

   — Luuuuiz! —, escutei vovó gritar da lavanderia quando eu já estava quase no último degrau.

   — Oi vovó! Já acordei! —, prontamente respondi saltitando pela copa.

— Vá se arrumar, menino! Iremos a casa de Magnólia! — Ela gritava como um cão raivoso.

Sem pestanejar, mas um pouco emburrado, é verdade, fui logo subindo novamente a grande escada, infelizmente. Os degraus espaçados, as vezes curvos, e minhas pernas roliças, as vezes curtas. Fazia eu um considerável esforço pra subir um a um, reticente, avessas um tropeço, vou à escada, galgo-a aos três degraus, e me esforçando ao máximo, dou um pulo final, terminando-a.

Sempre achei a subida mais entediante que a descida (espero que isso fique como nota de rodapé). Às vezes range quando pisa forte. Vovó destesta e acha que vai estragar alguma coisa. Sempre cuidou muito bem da casa; preocupada, cheia de zelo. Soube mais tarde que no passado ela era de uma tia distante de vovó; uma que vendia leite de cabra e que agora não me recordo do nome; que era de fato muito caprichosa, muitos dos móveis ali pertenceram ao pai desta tia e estavam ali quase como grandes colossos da arquitetura clássica.

O corredor que levava para o meu quarto era amplo com seu elegante assoalho à moda antiga, de taco, com madeiras em forte contraste com o papel de parede em tons pastéis, meio fosco e quase opaco e que estampava ilustrações barrocas.

Queria vestir uma roupa bonita, mas minha cômoda quase não tinha roupas. Pra falar a verdade, eu quase não tenho roupas, mas por sorte, vovó havia me costurado uma nova camiseta, acho que era azul-celeste ou talvez fosse azul-bebê... O que eu sei é que tinha alguns detalhes bordados que eu não soube bem identificar o que era exatamente, talvez fosse um barquinho ou uma nuvem, mas que era lindo. Peguei-a em minhas mãos, era macia e tinha um cheirinho relaxante de lavanda.

Já fui logo tirando a blusa que usava, aquela mesma velha listrada de sempre e inesperadamente meus olhos foram direcionados à minha imagem refletida no espelho que ficava encostado a parede oposta a janela. A luz entrando desavergonhada me impossibilitiva de ver minha forma, afinal, eu estava na sua frente, apesar de tudo firmei a vista para meu reflexo contemplar. De um jeito estranho a visão de mim mesmo me alumbrava e na minha concepção eu estava diferente. Sim diferente! Extremamente diferente da última vez  que me observei por algum tempo. Eu estava parecido com papai, mas minha barriga era maior e mais boludinha. Isso me fazia rir. Me aproximei para me ver melhor e decidi arrastar o espelho pra que pudéssemos ficar em harmonia com o impertinente brilho do sol. A luminosidade tocava minha pele e por isso eu notava alguns fiapos de pelo que brotavam pela minha perna, tal qual penugem de pinto novo.

Todas as pessoas pareciam diferentes de mim agora, espacialmente as meninas, elas eram muito diferentes de mim ou do papai, elas se pareciam com a mamãe. Alisei meus pelinhos com vergonha e sem querer pensei: "agora tenho pelos quase como um lobo". Ri de mim mesmo. Um lobo tem muito mais pelos que isso. O papai é quem tinha muitos pelos no peito, nas pernas e na barriga, mas mesmo assim um lobo era muito mais peludo.

A Ursa e o LoboOnde histórias criam vida. Descubra agora