Lembrei-me daquela preciosa tarde de outubro em que mantinha-me compenetrado na dança das flores, sobrepostas, mergeando logo acima de mim. Pairavam já os vagalumes sobre as poças d'agua redivivas da chuva da noite anterior.
Ah outubro! Como eu amo o outubro! Vovó e eu havíamos ido realizar um lanche beira a rio e ela havia trazido um pano para que suas pernas de pele frágil não fosse afetada pela miúda joça que a grama liberava. As coisas amontoadas, numa cesta de juncos. Cachos de uvas, emaranhados em pencas, e junto deles potes de geleia e mel. O velho bule, com chá de camomila e as mesmas deliciosas bolachinhas de nata.
Deitei-me junto à grama; sentindo seu cheiro, exalando. Capivaras andavam pela ribeira alva, arenosa, juntinhas, em fila. Vovó contava-me uma fábula, uma que eu não havia nunca ouvido antes. As palavras da boca de vovó ressoavam, altas, porque o fluxo do rio às vezes.
— ... Mas este leão, por sua vez, se comportava como um pequeno e fofo cordeirinho, afinal, havia sido criado por cordeiros, — disse tirando um cacho de dentro do cesto. Balançou-o no ar como um pêndulo. —Acontece porém, que este não aprendeu a ter coragem...
— Exatamente como o leão de O Mágico de Oz, vovó? —, perguntei colhendo um bago.
Levei o a boca, era enjoativo, um tanto azedo. Empurrei-o com a ponta da língua, pressionando. A polpa rompeu-se. O sumo ácido, fervilhando. Cuspi a semente. Ela não me respondeu, seguiu lendo.
— Vivia se escondendo da própria sombra. Os outros cordeirinhos, os de verdade, viviam a zombar do assustado gigante leão que pra nada de fato servia, eles penssavam...
No meio do rio, muitas pedras. Espirrava a água quando nelas batia. A garça, com as asas abertas, planando atraente sob nossas cabeças; as libélulas solitárias de fim de estação e, às vezes, pequenas nuvens de mosquitinhos aproveitando o veranico de outono.
— Acho que este é o dia mais quente desde o outono começou, — disse amarfanhando num gesto afetuoso o lenço, passou-o sobre a testa, luzindo de suor. — Veja só como transpiro!
Despregueando as pregas da gola; azul, ela amparou no seio o lenço. Parecia inquieta, incomodada.
— Acho que é mesmo vovó..., — concordei, respirei de boca aberta, passei a mão na cara ardente e depois amarfanhei o rosto tal qual ela amarfanhara o lençol.
O céu azul se acinzentou no crepúsculo, e um morcego fez um voo rasante para comer os insetos, espalhados no ar. Não conseguia me concentrar. Foi a única vez que eu não prestei atenção numa história que vovó me contava.
— ... Subitamente o lobo revelou-se, —, continou ela, — pois estava escondido bem atrás de um arbusto de oliveira e por ser noite sua forma em deformação estava. O leão que não passava de um covarde se escondeu atrás do rebanho que deveria proteger, mas por conseguinte todos fugiram deixando-o para trás para que fosse, em suma, devorado pelo lobo desganado.
Daí então olhou confusa como se estivesse se esquecido do que exatamente estava falando e em seguida voltou seus olhos ao sol que cálido, já se ia, tardando-se, morimorto atrás das serras. Ergueu-se para pegar seu bule guardá-lo na cesta junto ao livro e depois com muito desajeito levantou-se a recolher o pano. Tinha no rosto um semblante distante, chateado.
Seguimos juntos. Ela mantinha ainda os olhos no céu, agora numa negrura; eu cantarolando alguma velha canção, não sei de onde arrumei. Talvez fosse de uma ciranda. Alguma daquelas que costumava cantar quando morava na cidade e mamãe me levava ao parque municipal pra brincar. Lá eu encontrava as outras crianças, filhas de outras mães, desnomiadas, inominadas. Rostos e dentes, e sorrindo brincávamos.
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A Ursa e o Lobo
FantasyLuiz está constantemente obstinado a se perder nas suas fantasias. Ele sonha com fábulas antigas e devaneia sobre contos clássicos. Todas as Imagens ao seu redor possuem paisagens sonoras e ele gosta de imaginar. O que ele não esperava é que talvez...