as ruinas se lembram

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Mal amanheceu e dei um uivo. Já estava me acostumando com aquela vida de lobinho, lobisomem como costumava falar Epaminondas. Imagina só que gozado seria se Epaminondas soubesse que eu era lobo agora. Jogava água benta mim!!

Fui dar uma volta pelos pastos daqui. De cima em baixo, tudo era verde. O próprio céu verdejava em nuvens de maracanãs e pequeninos periquitos. Lá na frente, toda a verdura começava a rir na alvura dos capulhos da várzea ferraz. A relva era florida e os animais da seiva colorida sorviam, enchendo a boca de flores. As vacas, pintadinhas, saciavam-se e deitavam-se nos colchões de penasco. Lá na frente em redemoinhos o Saci, clandestino, insistindo em atormentar as aves.

A verdura era indomável, ora pois, invadia até mesmo as águas. Surdia como uma espuma de esmeralda, bolhas de jade; fingia ilhotas, e as libélulas, cheias de olhos sobre o espelho esverdidinho acariciavam-se, estendendo-se por toda a superfície líquida, com sua concha de algas, para que não esfriasse o açude. Os jacus amoitados, em ninhos; os jaçanãs espargidos, juntinhos; era o estribilho da vida. Maravilhado, ia andejando, sob os poços, ao redor, mas ia tomando cuidado pra que não pisar esponja naquelas esponjas verdes, pois costumava haver cisternas profundas, por debaixo das folhas largas do aguapé.

Do outro lado do céu espelhado havia outro pasto, também de vacas holandesas polvilhado, que lhe eram lastro, e fiquei com vontade de jornadear por lá também. Fui indo sorrateiro, pelos cantos, evitando pisar fundo, forte. Rapidinho cheguei, acompanhando pelos bem-te-vis que cantavam eferveacidos pela quentura do dia. As vacas lançavam-me olhares de conjectura, mas eu tentava não parecer um intruso; não queria incomodá-las.

A medida que ia subindo um morrinho meio torto, caminho sei lá pra onde, as vacas iam rereando, de vez em quando surgia uma ou outra, espalhada, ilhada em terrenos baldios. Parei para descansar um pouco e sem perceber esbarrei-me num portão de ferro, castigado pelo tempo, carcomido pela ferrugem. Olhei curioso, dei uma fungada: cheiro do verde, esverdeando meu focinho. Senti saudades de ter nariz, é um bocado diferente. Isto é, a forma com que se sente cheiros com o nariz de menino é diferente da forma com que se sente cheiro com focinho de lobinho.

O mato rasteiro havia tomado conta de tudo, e não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelo canteiros, subira pelas paredes dos muros, enroscando-se pelos anfractos, infiltrando-se ávidos pelos rachões de concreto e barro, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, a beldroega em carreirinha indiscreta apontou caules rubros, de baixo do que havia sido uma cerca de arame, e, talo a talo avançou. As pedras rebentavam em folhagem e a flora frondeava a paisagem, fazendo com que a rocha nua florescesse.

Eram os restos do que um dia fora uma fazenda, devastada; dominada aos contos por touceiras altas de capim-gordura, acopladas. O sol crescia e amadurecia em derrocadas; fervilhando um pé de abacate, corpulento, pendulando galhos solteiros. Não havia frutos, mas já florava pititinhas, frondeando radioso. A ervagem viçosa escondia os destroços de uma tempo que há muito se fora, mas que agora se refazia, no breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando sob minhas patas, peludas.

Parei de frente a uma capelinha, coberta de cima em baixo por uma trepadeira selvagem, que sem nenhuma piedade a envolvia num abraço se cipós e folhas. Havia mais a frente um chiqueiro desmantelado e ao lado as ruínas do que me pareceu antes ser um grande curral. Encostado em um retorcido carvalho estava um asno, de terno a ler um livro, ao que me percebeu disse: — Há mais bela coisa que a natureza orvalhada distribuindo vida gratuitamente?

Aproximei-me em passos cautelosos.

— Tais lendo um livro? —Perguntei. Sempre achei que asnos fossem burros e não gostassem tanto assim de ler. Bom talvez este fosse um asno fora da curva.

A Ursa e o LoboOnde histórias criam vida. Descubra agora