vovó tem uma história pra contar

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1475 palavras

A palavra história é uma palavra antiquíssima: [tão antiga que às vezes nos cansamos dela. Raramente, é verdade, chegou-se a querer riscá-la completamente do vocabulário.] (...) Diz-se algumas vezes: "A história é a ciência do passado." É [no meu modo de ver] falar errado. 

{Marc Bloch, Apologia da História, 1949}

O céu estava repleto de nuvens pesadas que pareciam carregar rios inteiros dentro de si, aflitas, suplicando pela oportunidade de chorar. Aquela escuridão de tempestade me dava muito medo, é verdade. Eu sempre tive medo do escuro, de chuva forte, de relâmpago e trovões. Enquanto Vovó preparava chocolate quente eu ficava admirando a paisagem obscura lá fora, de alguma forma era docemente tentadora, na mesma medida que era terrivelmente amedrontadora. O medo que ficava fumegando em meus pensamentos não me impedia de querer ver o bosque, que deveria ser tão lindo na chuva. Quase que eu podia imaginar o som das gotas tocando a superfície da folhas verdes, secas e murchas, o entoar de uma bela sinfonia.

— Vovó? —, chamei puxando a barra da sua blusa. Aquilo a deixava irritada de todas as formas. — O que os lobos fazem na chuva? —, a curiosidade escaldante em minha jovem cabeça prematura.

— O que você faz na chuva? —, retrucou rabugenta.

— Eu me escondo pra não me molhar, mas a vezes queria poder poder brincar lá fora na chuva, com barquinhos de papel. —, disse fazendo ondas com o braço.

— Mas o papel se desfaz na chuva. —, o tom de sua voz parecia distante e sua cara não era das melhores.

— Sim... Lobos se desfazem na chuva? —, perguntei pulando sobre o sofá.

— Lobos não temem a chuva meu querido. São bravos caçadores e por isso não temem a noite, o frio ou a chuva.

— Quero ser como um lobo então. —, tentei de forma desengonçada imitar um lobo pulando do sofá para o tapete da sala. Vovó colocou o chocolate quente sobre a mesinha de centro e pegou sua agulha de tricô para sentar-se na sua cadeira favorita, aquela bem próxima da janela. Às vezes tricotava e tricotava e às vezes parava observando o céu derramando lágrimas, lágrimas estas que escorriam preguiçosas pelo vidro embaciado da janela.

— Cuidado para não fazer uma bagunça. —, disse sem desviar os olhos do que estava fazendo. Com a ponta da agulha, bem grossa por sinal, ela tentava alinhar dois pontos cegos que faziam um pequeno  carocinho na meia que estava há dois dias fazendo. 

— Apenas lobos vivem do bosque? —, perguntei já exausto de pular pra lá e pra cá.

Voltada para a luz, vovó enfiava a agulha. O novelo rolou pelo chão da sala lentamente. Umedeceu a ponta linha, na ponta dos lábios, com saliva. franziu a testa erguendo a agulha na altura dos olhos, agora semicerrados - pois dizia ela enxergar melhor assim, e toda concentrada fez a a primeira tentativa. Deu errado. Sempre teimosa, que nem eu mesmo, lá foi ela mordiscando a linha novamente e num gesto incisivo aproximou-as, linha e agulha, como se dois amantes proibidos fossem. A ponta do fio, endurecida de cuspe, varou sem nenhum obstáculo o buraco da agulha. Com muita satisfação ela me lançou melíflua um sorriso convencido e disse: — Diversos animais vivem no bosque, meu neto. Muitas espécies de aves, anfíbios, répteis, insetos, mamíferos, plantas fungos e bactérias, — ela falava com tanta sabedoria. — Mas, você deve tomar cuidado, não é um lugar pra uma criança pequenina como você, Luiz.

Eu queria perguntar por quê, mas tinha medo de receber uma resposta assustadora. Ficamos em silêncio enquanto ela movia com destreza a agulha e eu meus olhos dançavam com este movimento, assim foi até que pedi que vovó me contasse uma história sobre lobos. Ela pensou por um tempo e enfim começou:

A Ursa e o LoboOnde histórias criam vida. Descubra agora