Memórias recortadas

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O luto é um dos sentimentos mais longos, danosos e cruéis que existe. É quando você perde algo de si mesmo, quando algo é destacado do conjunto real que compunha sua existência. Qualquer perda é uma forma de luto. Aquele vazio que fica, aquele silêncio que se expande, a imobilidade que acontece, a falta de sentido que se produz. E essas sensações se arrastam vagarosamente por dias, por semanas, por meses, anos, vidas e vidas. E por mais que o tempo esconda esses buracos, no mínimo instante descuidado ele se revela, por vezes menos profundo, mas ainda ali, no mesmo espaço onde antes residia uma forma de presença.

Aquele domingo estava frio e totalmente nublado contradizendo todas as previsões meteorológicas do dia anterior. Parecia que os céus absorviam a dor da morte de Yuta e expurgavam sobre nossas cabeças todos os sentimentos antitéticos que residiam sobre sua perda. Winwin, que envolvia meu braço esquerdo como se fosse a única coisa concreta da qual pudesse se apoiar, desfazia-se num choro escuso. Diante daquelas pessoas de preto, do choro dos outros parentes, da umidade do ar, de toda aquela dor que unia aquele momento, eu só tentava imaginar o quanto ele estava sendo forte perante tudo aquilo. Como ele estava aguentando?

Indiferente às minhas aversões com Yuta, sua morte extremamente violenta foi um acontecimento chocante e doloroso, foi uma vida ceifada no auge da sua potencialidade. E de qualquer forma ele era alguém a qual eu inseria de alguma maneira no meu perímetro de amigos. Na borda daquela cova, observando a terra cobrir definitivamente a última visão de seu corpo eu só tentava projetar em mim a dor que Winwin estava sentindo por perder para sempre a pessoa que tanto amava. A pessoa que ele fazia planos, a pessoa que ele organizava em sua existência tecendo futuros e criando destinos. Agora nada disso se concretizará mais. Minhas mãos o abraçavam fortemente, tentando passar o que as palavras não conseguiam mais dizer.

Ver Dong Sicheng sentir toda aquela dor trouxe um novo sentimento que se enraizava em mim. Meus olhos que até o momento acompanhavam a terra cobrir o caixão, ergueu-se e captaram do outro lado, junto ao público que assistia ao enterro, a figura de Lucas.

Inevitável foi deixar de pensar em situações na qual Lucas estivesse morto, na qual sua existência desaparecesse da Terra. Ou melhor, inevitável eu pensar numa situação onde eu o perdia, onde eu não o via mais, e isso causou dor, me causou um medo, uma sensação desconfortável que pulsava dentro de mim ampliando-se, quase transformando-se em lágrimas. Essas sensações me lembraram de todos os perigos que ele passava devido a sua posição profissional, e principalmente por minha causa, nos últimos tempos. Lucas olhou para mim de longe me questionando ocultamente por sentimentos tão nublados que passavam no profundo dos meus olhos, tentei desviar, tentei fingir, mas eu só conseguia olhar para si como se a qualquer momento eu não pudesse mais me privilegiar com sua imagem. Como se sua figura pudesse se perder no acúmulo de minhas lembranças soltas. Aquilo seria demais e eu não sei se suportaria.

Winwin abraçou-me quando a terra cobriu totalmente o caixão, e ali ele se desmanchou completamente, eu não poderia falar nada, eu só fazia de meus braços seu abrigo, um lugar que ele soubesse que poderia descansar.

— Por que dói tanto Hen? - Sua voz abafada saiu deformada pelo choro. - Eu não sinto mais fome, eu não sinto mais alegria e nem tristeza. É um vazio. É um nada. Um completo nada, como se tivessem arrancado uma parte de mim. Está doendo muito. Isso é tão insuportável...

Era quase indescritível o que eu senti ao ouvi-lo. Uma dor tão ampla e complexa, que era impossível acessá-la, como alguém poderia sofrer de tal maneira? O abracei ainda mais forte, minhas lágrimas uniram-se com as suas, meu coração batia no ritmo do seu, nossos sangues latejavam juntos, naquele momento eu o aqueci com todo o meu amor. Eu não sabia mais o que fazer.

Após nosso momento introspectivo exposto a todos aqueles olhares tristes, os familiares de Yuta vieram consolar Winwin e assim eu me afastei um pouco tentando recobrar minha sobriedade.

Afraid - Medo InvisívelOnde histórias criam vida. Descubra agora