O hospital parecia sombrio a essa hora da noite. Ele retomara a consciência pouco antes de escurecer. Via vultos atrás da porta de vidro martelado, andando para ambos os lados, incessantemente. Alguma enfermeira ou médico, pensou equivocadamente. Quis apertar a campainha, avisar que estava acordado, quem sabe saísse da UTI, mas achou mais seguro esperar o clarear do dia. Precisava convencer os médicos a deixarem-no procurar por Jéssica, antes que o pior acontecesse. Aquela fora uma forma inteligente de neutralizá-lo. Ele só esperava que não fosse tarde demais. Voltou a dormir.
***
A noite fora longa para Ricardo. Não pregou os olhos, vigiando caso algum animal se aproximasse. Jéssica insistiu em passar a noite inteira em cima de uma árvore, abrigando-se. Ele temia uma queda que lhe provocasse a fratura de algum membro. Isso o obrigaria a chamar ajuda e os inimigos, seja lá quem fossem, descobririam onde estavam.
Ainda duvidava da versão de Cornélio de que ela estava sendo caçada. Para Ricardo, ele mesmo queria tirá-la de circulação para deixar Victor mais sozinho e indefeso do que já estava, ou simplesmente para obrigá-la a contar os segredos que ele lhe confiara. Conhecia-a bem o suficiente para saber que jamais trairia Victor, mesmo sob tortura. Se ele lhe pedira segredo, certamente esse segredo estava bem guardado. Nem ao menos ele ousara lhe perguntar do que se tratava. Não queria saber mais do que já ouvira durante o percurso, nas conversas de Cornélio com Jéssica. Esses assuntos não lhe diziam respeito e apenas estava ali para ajudar a amiga.
— Cornélio não foi muito esperto trazendo-me com vocês. Será que ele pensou que eu ficaria passivo diante de um absurdo desses?
— Não sei o que dizer. Na verdade nem sei o que pensar. E se ele não estiver mentindo? O que faremos daqui para frente? Pra onde vamos?
— Como você pôde confiar em Cornélio, depois de tudo o que ele lhe fez? Será que não aprende? Ele foi desonesto com você quando anunciou a sua descoberta como se fosse dele. Foi desonesto de novo quando dispensou o público que assistiria à sua palestra sobre as explosões solares e foi desonesto também quando a impediu de ingressar na Academia Brasileira de Ciências. Como pôde confiar nele?
— Eu não disse que confio nele. Você sabe que não sou muito fã de Cornélio, mas alguma coisa me diz que ele estava falando a verdade.
— E o que a fez pensar isso?
— Eu não sei, Ricardo — ela fez uma pausa e respirou fundo, encarando o amigo — Eu não sei.
Caminharam durante horas a fio. Os seus pés doíam pelo atrito dos sapatos apertados e pelas pedras do caminho que maltratavam as solas, sem piedade. Ricardo sugeriu que voltassem para a rodovia, mas Jéssica achou muito arriscado. Em algum lugar, Cornélio os estaria esperando. Ele sabia que não tinham pra onde ir, teriam de voltar para casa mais cedo ou mais tarde. Continuaram pela estrada de chão. O sol castigava seus corpos sedentos, quando um barulho de motor chamou sua atenção. Pensaram em se esconder, mas ao seu redor viam apenas o campo verde de pastagens, até a linha do horizonte. Pararam à beira da estrada.
Um caminhão de carga perigosa transitava por ali. Ao passar por eles, o homem estacionou logo à frente. Jéssica pensou se Cornélio já os havia localizado, mas logo viu que seria absurdo. Ele não poderia ter mandado um caminhão de carga atrás deles, seria perigoso demais.
— Olá! O que fazem por aqui? É muito arriscado caminhar por esse deserto, ainda mais com uma mulher ao lado, rapaz. — disse o caminhoneiro para Ricardo.
— Oi! É que nós tivemos problemas com o carro logo ali atrás e... Bem, não tínhamos alternativa a não ser continuar nosso caminho a pé — mentiu ele.
— Que estranho, não me lembro de ter visto nenhum carro quebrado ali atrás. Mas isso não importa. Querem uma carona?
— Pra onde está indo?
— Não muito longe daqui, mas posso deixá-los em uma oficina no caminho, aí poderão vir direto com o guincho buscar o seu carro.
— Só um momento, por favor — pediu Ricardo, afastando-se um pouco do caminhão, puxando Jéssica pelo braço.
— O que você acha, Jéssica? Será que é seguro?
— Eu não sei, mas tenho certeza de que ele não sabe nada sobre nós. É apenas um trabalhador, tentando ajudar. Vamos com ele, pelo menos até um ponto mais perto, daí poderemos voltar procurar a polícia. Cornélio não fará nada conosco se registrarmos uma queixa contra ele na delegacia. Ele tem uma reputação a zelar.
— Está bem. É você quem manda — concordou ele. No fundo, ele sabia que não tinham outra opção. Ainda estavam longe demais para refazer o caminho a pé. Jéssica não aguentaria mais uma noite ao relento.
Subiram na cabine, ao lado do homem, que não parava de falar nem um minuto.
— Meu nome é Rogério Alagoas. Sou caminhoneiro desde os meus quinze anos. Naquela época não era preciso ter carteira de motorista e não existiam essas frescuras todas de hoje em dia. As coisas eram simples... — contava ele.
Quatro horas se passaram até chegarem a uma oficina mecânica. Fizeram todo o trajeto pelo interior, sem voltar para a rodovia federal. Não tinham encontrado outros automóveis circulando por ali, apenas mais dois ou três caminhões, com o mesmo tipo de carga.
— É mais seguro para nós levarmos carga perigosa por aqui. Demoramos três vezes mais, mas ainda assim vale a pena — explicava ele. O homem desceu do caminhão e entrou na oficina junto com Ricardo. Pediu a Jéssica que esperasse ali mesmo. Ela insistiu em acompanhá-los, mas o homem negou. — Aqui não é lugar para uma dama como a senhorita — disse ele. Ela observou-os negociando com o dono da oficina, que parecia ser um velho conhecido do caminhoneiro. Desceu do veiculo bem devagar. Entrou sem bater à porta.
— O que faz aqui? Pensei que tivesse pedido que esperasse no caminhão — disse rudemente o homem.
— É que eu... precisava... de um banheiro... — improvisou. O mecânico apontou para um corredor apertado e lhe disse ser a última porta, nos fundos. Ela entrou no cubículo imundo, onde permaneceu mais alguns instantes. Quando voltou, Rogério já havia ido embora. Não foi difícil para Ricardo desmentir toda a história e dispensar o guincho. O dono da oficina não ficou muito satisfeito com as desculpas do casal, mas preferiu não arranjar confusão.
— Mais duas horas! Meus pés já não aguentam mais! — reclamava ela — Será que nunca vamos chegar a algum lugar! Não achei que estivéssemos tão longe da civilização!
— E não estamos, olhe — disse Ricardo apontando para uma casa isolada ao longe. Aparentemente era uma sede antiga de fazenda.
— Vamos até lá. Eles devem ter um carro, podemos barganhar uma carona, que tal?
— E temos um plano “B”? E eu não trouxe nenhum dinheiro, minha bolsa ficou no apartamento. Mesmo que eu soubesse onde estou, não poderia sequer chamar um táxi!
— Não se preocupe. O que eu trouxe no bolso deve ser o suficiente para garantir nossa volta — tranquilizou-a.
A viagem não foi longa, afinal estavam mais perto de casa do que pensavam. A moça da casa dirigia feito uma louca pela estrada e mais ainda quando chegaram ao asfalto.
— Temos sorte de ainda estarmos vivos! Pensei que aquela maluca fosse nos matar no caminho! — exclamou Ricardo.
— Não exagere, Ricardo. Vamos logo pro hospital. Preciso ver como Victor está. Temo que quando ele acordar corra sério risco de morte. Com certeza não o deixaram vivo de propósito. Devem ter-se equivocado, achado que já o tinham matado. É muito perigoso deixá-lo sozinho em um momento como este.
— Você está certa. Vamos pra lá imediatamente. Tem o telefone de algum taxista? — brincou ele, acenando para um dos táxis que passavam por ali.
Obrigada por acompanhar!
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2020 - A Revelação (Degustação)
General FictionA cientista Jéssica Salles não parava de remoer mágoas, ainda mais depois que a sua descoberta foi anunciada como mérito de seu ex-professor. Não era fácil admitir que a academia de ciências a ignorara. Apenas o padre Victor, escorraçado por Cornéli...