0 • Prólogo.

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"Estas alegrias violentas tem fins violentos
Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora
Que num beijo se consomem."

– Romeu e Julieta, Ato II, Cena VI.

#IndigenteEnxerido
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O inconsciente é o local onde estão arquivadas todas as informações que absorvemos ao longo da vida. Porém, este "banco de dados" encontra-se reprimido pelo nosso cérebro e não é acessado diariamente pela mente consciente.

O motivo desse arquivamento acontece de maneira natural ou, também, pode ser oriundo de traumas, como em casos de acidentes, mortes repentinas, abusos e experiências dolorosas. O inconsciente aloja tudo aquilo que é nocivo para a nossa saúde mental e arquiva em um local de difícil acesso.

Era para lá que eu tentava, incansavelmente, fazer com que algumas memórias fossem.

Certa noite, minha mãe me contou uma lenda que foi criada no norte da Itália, lembro que se chamava "La cittá di smeraldo".

Houve um homem, uma vez, que foi rejeitado por seu pai logo após seu nascimento, acabando por ir morar escondido e isolado de todos em uma torre, perto de uma cidade no norte da Itália. Sua aparência era horrível e monstruosa, segundo ele, fazendo com que se escondesse e nunca saísse daquele lugar, a única coisa que o fazia feliz era seu jardim de flores smeraldo, que cultivava com tanto carinho e amor. Mas, um dia, apareceu uma mulher pobre com roupas velhas e surradas em seu quintal e começou a roubar as flores que havia lá, ele ficou irritado, mas a mulher, todos os dias aparecia em seu jardim para as colher.

Assim, decidiu vestir uma máscara para sair na cidade e descobrir o que a moça fazia com as flores, até que descobriu que ela, sendo muito pobre, as vendia para ter o que comer. Mas, ao invés de aparecer e permitir que a mesma pegasse as flores ou até mesmo ensiná-la todos os métodos que conhecia sobre cultivo como ele verdadeiramente queria, por medo de que ela se assustasse com a sua aparência e o julgasse, o homem apenas decidiu ir ao seu jardim descobrir cada vez mais maneiras novas de tornar as plantas mais bonitas e em maior número, para que a mulher pudesse ganhar dinheiro, criando até mesmo uma flor nova que ela pudesse vender por um valor alto e assim conseguir ajudá-la.

E então, quando as flores por fim desabrocharam, a mulher não voltou, não importa quanto tempo ele esperasse. Isso porque, indo até a cidade, ele descobriu que sem dinheiro suficiente as vendendo, a mesma acabou morrendo de fome.

— Talvez se naquela época ele tivesse um pouco mais de coragem e ficasse diante dela, tudo seria diferente, não acha? – minha mãe terminou de contar a lenda me fazendo essa pergunta, que eu não consegui não questionar o porquê daquele pensamento.

E ela sempre me respondia.

— Se o homem tivesse amado a si mesmo e não se escondesse atrás de uma máscara, o destino da moça poderia ter sido diferente, meu bem. Sabe, constantemente nos escondemos com máscaras para sermos mais facilmente aceitos, criamos uma persona e oprimimos nosso eu verdadeiro por medo dos julgamentos e palavras de ódio que serão direcionadas a nós. Não quero nunca que você tenha medo disso, porque assim como na história, pode haver uma mulher como a da torre em sua vida e você pode fazer do destino desse alguém, algo completamente diferente, meu amor.

Essa fala ronda minha cabeça em alguns momentos, até os dias de hoje e eu me sinto decepcionado comigo mesmo por não ter conseguido seguir o conselho da minha mãe.

Me sentia decepcionado por muita coisa. Principalmente por minhas lembranças.


Um ano atrás.


—... Merda! Merda! Merda!

O que foi aquilo?

— A culpa é sua, toda sua, porra! – ele falava enquanto tentava limpar as mãos no banheiro da sua sala.

Eu continuava paralisado.

Por que isso aconteceu?

— Você tinha que ser um filho da puta curioso e burro!

Meus olhos fitam a figura jogada no tapete do lugar, se torna mais difícil respirar.

— Seu merda, você não vai abrir a boca, tá ouvindo?

Eu preciso sair daqui.

— Volta aqui!

As horas se passaram, a água do chuveiro não foi o suficiente para limpar as cenas da minha cabeça. Minha mãe chegou há um tempo, mas não consigo olhar para ela, não consigo dizer nada.

— Filho?

Ela não merece nada disso. Não posso abrir a boca, ele me disse.

— O que está acontecendo?

Peço desculpas em silêncio, no meio do caos na minha mente.

Três dias se passaram, como se nada tivesse, de fato, acontecido.

— Como assim? – ouço minha mãe dizer, me encolhendo cada vez mais ao ver a expressão confusa dela em frente aos dois policiais que definitivamente não pareciam da polícia. — Não acharam nada?

Uma semana corre entre nós, tudo parece calmo, mas dentro de casa é como se nossa tempestade tivesse acabado de começar.

— Ele foi embora? - meu coração respira quando ouço a frase, rebelde e traiçoeiro, mas verdadeiro como nunca.

Eu ouço o seu choro.

Ele não vai voltar.



Então eu crio uma barreira com esse carrossel de lembranças decepcionantes

Essas que machucam, corroem, doem de maneira dilacerante.

Me vi perdido em minha mente, acostumado com a falta de amor, afeto e felicidade.

Foi aí que eu o conheci.

E ele fez tudo mudar, como se depois de muito tempo me deixando imergir em um mar de descontentamento, meu corpo voltasse a reagir a essa queda.

Ele entrou em minha vida sem que eu percebesse e acabou tirando tudo o que me fazia não querer vivê-la.

E em meio a tudo que nos cercava, depois de provarmos do sentimento que cresceu em nós, eu não poderia, nem por um pequeno e mísero segundo, deixar de amá-lo.

Dizem que o amor é sobre sacrifícios, entrega, paciência.

Eu esperava que meus sacrifícios tivessem sido o bastante para que ele soubesse a todo instante, que eu era apenas dele, e seria eternamente grato por ele ser meu.

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#IndigenteEnxerido

Decalcomanie / •jikookOnde histórias criam vida. Descubra agora