Vitrine

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Enquanto as cortinas alcançarem o teto
E me cobrirem as tais vergonhas, 
Serei um reflexo ambulante e atento 
Das imposições apáticas.

A seda me cobre o corpo tão bem... 
Mistério e feminilidade, film noir.
As mentiras mantêm meu coração batendo; femme fatale.
Consumo frequentes doses homeopáticas de pavor.

E a paixão, onde ficou? 
Você também deve tê-la tirado de mim,
Como fez com aquilo que não restou.
Seria capaz de apaixonar-me pelo espelho assim?

Suas pupilas me correm o corpo 
E fazem com que fujam os arrepios,
Me quer tanto, mas sua língua é tão falaciosa.
Você busca um maldito refúgio em meu templo distópico.

Me pergunto o que fará quando notar 
Que a carência reside apenas em você,
E que já estive tanto tempo por baixo 
Que agora é minha vez de estar no topo;

Que as tempestades que você causa 
São uma gota, comparadas às dores em que afoguei-me,
E que a pressa que move seus pés sobre a água rasa 
Nunca me disse respeito, pois sempre rejeitaram-me. 

Diga-me, querido, você teme?
Aí, no outro lado da vitrine,
Você faz as mesmas perguntas que faço?
Você também tem receio de viver?

Também vive como um manequim,
Pertencente a lugar nenhum?
Odeia que os adereços à venda não te sirvam
Sob os olhos da justiça mundana e vulgar?

Após as cortinas tocarem o chão,
Observe meus mínimos detalhes. 
Em minha nudez não há devassidão,
A impureza é fruto natural dos seus olhares. 

As linhas que me contornavam
Foram a maldição que nunca desejei,
E as cicatrizes que você deixou 
São as provas de que não sabe a metade do que sei. 

Sei que pode me ver, mas não compreender;
Que você pode fingir, mas não concordar;
Que pode falar, mas não pretender;
Que pode assentir, mas não se importar. 

Floresci enquanto guerreavam, insultavam o desconhecido.
Emolduraram minha imagem e me venderam,
Depositando falácias em suas legendas; 
Promessas de utopias em tempos de perigo.

E as respostas que semeiam, com ódio maior...
Nunca precisei de validação, pois sei que existo,
Mas sou tão humana quanto você, não sou um bem menor.
Se tentar arrancar minha voz, não espere que fique em silêncio.

Consegue notar, exposta à luz e à verdade?
Meu corpo é fonte de vida, matriz, obra-prima.
Consegue amar, mesmo do outro lado da vitrine?
Minhas conquistas são consequências do amor e do estigma.

O preço nas etiquetas não expressam meu valor;
Mesmo que tente me colocar dentro de paredes, 
Não perecerei, não cairei em esquecimento:
Minha verdadeira imagem irá ecoar e as vitrines estilhaçar.

E quando a verdade não for suficiente
Para nos libertar, nem da sua mente conseguirá escapar.
Aquela culpa vai te acompanhar 
Até o falso epitáfio te abraçar.

A Necrose da EmoçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora