4. Face

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Ciente que todos ouviram meu grito e viram o menino correr para longe, Cássio não precisou me puxar pelo braço para que eu o acompanhasse para a sala da chefe, pois eu mesma informei que não precisava de auxílio para me locomover pelos corredores. Sabendo que aquilo poderia causar um grande problema, preparei-me psicologicamente para qualquer tipo de repreensão enquanto colocava um pé à frente do outro. Repassava a memória ainda fresca em minha mente, recordando o quão traumatizante foi aquela experiência para a criança que tanto ansiava compreensão.

Talvez minhas atitudes nos últimos dias tenham sido impulsionadas pela sensação ilusória que talvez fosse ocasionada pelo cansaço físico e até mental, porém, não conseguia encontrar nada que justificasse todas as fantasias alucinógenas que passei por.

Cássio abriu a porta à nossa frente após receber a resposta solicitada, e então abriu espaço para que eu adentrasse. Em silêncio, dei passos que me colocaram dentro daquele lugar, e não pude evitar o arrepio na espinha quando a única forma de saída foi fechada, me deixando a sós com a mulher loira de pele bronzeada.

— Sente-se, Hailey. — ela fez um gesto preguiçoso com a mão, indicando a cadeira a frente de sua mesa. Antes de me questionar como ela sabia meu nome, sentei-me, colocando as mãos nervosas sobre o colo. — soube que houve um incidente envolvendo seu nome. Pode me explicar o que houve para que uma criança saísse correndo e chorando para fora de nossa biblioteca?

— Eu não... Eu não sei, senhora. — senti a necessidade de encarar minhas próprias mãos; as unhas curtas e cruas com um tom rosado nas pontas. — eu não sei o que aconteceu comigo para que eu tivesse essa atitude, normalmente sei lidar com crianças muito bem e dessa vez...

— Você gritou com uma. — cortou-me de modo tão firme que foi difícil não me contorcer.

— Sim, senhora.

— Então me parece que você está precisando descansar um pouco, talvez para pensar melhor no que fez. Eu costumo zelar pelo bem-estar dos meus funcionários, e consigo notar que você não está no seu melhor dia. Irei liberá-la cedo, acredito que apesar da falta de pessoas trabalhando, alguém pode se encarregar da sua função. Qualquer problema, quero que informe a central da empresa, tenha um bom descanso, senhorita Winchester. — então ela direcionou um papel à mim, e ao analisá-lo, pude ver que tinha o número da central. Suspirei baixo e a encarei nos olhos castanhos.

— Certo, senhora, eu agradeço a compreensão imensamente — tentei soar o mais formal possível, ajustando minha postura antes de erguer-me de fato.

Ela sorriu para mim, e embora aquilo não me parecesse tão verdadeiro, retribui; me direcionando à saída.
Ao lado externo da biblioteca, observei alguns carros passando enquanto o celular se alinhava ao meu ouvido, e quando ouvi a voz de Dean do outro lado da linha, expliquei toda a situação. Contudo, ele demonstrou estar ocupado naquele momento, porém prometeu que me buscaria em breve. Então, sentei-me nas escadas curtas que davam acesso à entrada principal de minha área de serviço, e ali repassei páginas do livro que resolvi levar comigo.

— Eu acho que prefiro minhas revistas pornô — Ergui meu olhar para verificar quem estava à minha frente, formando uma sombra diante da página aberta em meu colo. Meu irmão riu de minha expressão.

— Você sempre prefere suas revistas pornô, Dean. — me levantei e alinhei o livro ao meu corpo, descendo os outros três degraus.

— Não, tem momentos que eu prefiro assistir. Tem um que se chama "As asiáticas peitudas", você precisa ver, inclusive — disse ele, dando a volta em seu veículo de um preto brilhante. Revirei os olhos e adentrei no banco da frente, e com meu peso, um barulho foi emitido de modo notório, tornando-se uma onda sonora reconhecível e repugnante. Ao ver o rosto risonho de Dean, pude ver o quê era.

— De novo você me fez sentar em uma almofada de pum?! — puxei o objeto citado debaixo de minhas nadegas, jogando no banco de trás.

— Isso nunca perde a graça.

Diante da risada de meu irmão, apesar de já estar enjoada da brincadeira, tive que rir, pelo menos por um momento naquele dia. E me permiti cantarolar músicas aceleradas que nem mesmo fazia parte do meu estilo musical favorito, mas que ele apreciava. Até o momento, eu não tinha sequer mencionado o nome de Sam, pois tinha receio da resposta. Não queria receber a notícia de que não suportou a ideia de ficar e teve que se afastar outra vez, sem um aviso ou algo que confirmaria sua volta.

Contudo, ao ser deixada em casa, desci do Chevy Impala 1967, do qual Dean tanto se orgulhava e então visualizei a área a minha frente: gramado extenso e bem aparado; uma casa consideravelmente grande e de um modelo inadequado para os dias de hoje. Porém, ainda assim, meu lar.

Apesar de ter algumas memórias odiosas envolvendo alguns conflitos familiares, costumava preservar as coisas boas que passei na mansão Winchester. Como herdeiros de nossos pais, ganhamos nosso lar e pequenos bens que bastaram para nos manter e preservar a memória de nossos pais.
Apesar de eu não tê-los conhecido.

Uma pancada em meu corpo faz com que eu me impulsione para frente e segure meus pertences firmemente para que não caíssem no chão, e ao ajustar à visão, percebo que Dean quase me derrubou com o propósito de assistir seu desenho animado favorito: Scooby-doo. Bati meus pés contra o chão com força, evidentemente irritada; mas seus olhos estavam vidrados na tela, e os ombros inclinados na direção da luz, nem mesmo notou quando subi as escadas e me direcionei ao meu quarto.

E quando fechei a porta, foi quando pude jogar minhas costas contra a cama e deixar a bolsa ao meu lado. Apesar de ter trabalhado pouco, minha coluna doía e meus pés lembravam-me do quanto andei. Mas uma sensação calorosa fez-se presente sobre a camada de minha pele, ondulante e abrangente. Parei de associá-la ao cansaço assim que se tornou ardente, e meu esôfago oscilou conforme algo implorava por passagem. Ergui-me, curvando o pescoço e apertando os olhos quando o líquido saiu de mim, sendo despejados no chão, e em meus sapatos, e em algo mais que isso.

Esforcei-me para parar, mas ainda estava curvada e ainda sucumbia a sensação de pesar. Meus joelhos, unidos no chão, sentiam a umidade sob mim e era difícil visualizar centímetros à frente. Até que parou. Ainda esperava que saísse; os olhos marejados ajustando-se a claridade.
Coloração rúbida estava diante de mim, e qualquer tipo de sentimento desvencilhou-se da minha fragilidade. Sangue. Sangue reluzente de um vermelho tão profundo quanto vinho. E aquilo tinha saído de mim.

Meu rosto lentamente virou-se para o espelho, e ali vi a mim mesma. Perplexidade dançava na íris sombria, e os lábios e o queixo pintados de escarlate. Meu dedo indicador ousou tocar meu lábio inferior, igualmente trêmulo, buscando compreensão.
Mas minha passagem de ar é bloqueada quando outra sensação me golpea, vi diante de mim o terror retornar a minha face quando minhas mãos foram ao meu pescoço, e eu pude sentir o metal frio diante do meu toque. Correntes invisíveis apertavam-se, enquanto sons de engrenagem alcançavam minhas vias auditivas. As pernas agitaram-se, escorregando no líquido. E mesmo quando meu corpo levitou e meus olhos reviraram sob as pálpebras, elas ainda se moviam, relutantes.

Sem sentir o chão sob meus pés descalços, senti o impacto em meu corpo quando fui lançada contra a parede, e meus braços foram forçados por mãos inexistentes a permanecerem abertos e alinhados à área plana. Ar retornou aos meus pulmões, e eu buscava mais oxigênio mesmo quando minhas outras ações estavam impedidas. Como uma cruz. Uma cruz na parede. Nada passava em minha mente, nenhuma palavra em minha boca. Mas ele estava lá. Poderia senti-lo. O zumbido em meus ouvidos anunciou sua chegada, e no espelho pude vê-lo. O sonho era verídico e insano.

A imagem de um homem robusto tornou-se cada vez mais nítida. E o rosto, não tinha feridas. Estava completo. Lívido.
Um passo a frente e ele se progetou para fora do que era antes uma imagem, e me examinou com atenção. Meus músculos não respondiam aos meus comandos, mas eletricidade atravessou meus neurônios a ponto de revirar meu estômago. Olhos castanhos estudaram-me, e o rosto belo inclinou-se para o lado com suavidade. Tentei me soltar mais uma vez, mas nem mesmo o ar se moveu.

E ao comando de sua mão, fui lançada para o chão, e ao tentar me erguer e fugir, todos os meus membros amoleceram e tudo resumiu-se em escuridão

Save MeOnde histórias criam vida. Descubra agora