Prólogo

178 20 74
                                    

Sempre fui apaixonada pela primavera. Durante a primeira década de minha vida, eu costumava passar noites em frente à janela, esperando capturar o exato momento onde as flores abririam orgulhosamente suas pétalas. Creio que seja desnecessário dizer que nunca consegui presenciar tal fenômeno, pois mudanças como aquelas são lentas demais para que olhos infantis possam perceber seus diferentes estágios; até hoje, afinal, não as notamos.

Era um dia de primavera quando a companheira de meu pai entrou em trabalho de parto.

Se eu me esforçasse o suficiente, conseguiria escutar seus gritos e choros do fim do corredor. Não me recordo exatamente o que estava fazendo ali, mas, embora não fosse próxima da mulher, tinha medo de que o bebê a estivesse matando.

Meu receio não era infundado, porém. Quanto mais fracos os gritos se tornavam, mais movimentação podia ser escutada de dentro do quarto, onde entraram previamente duas criadas. A porta entreaberta se apresentou como um irresistível convite para que eu espiasse (só por alguns segundos, eu disse a mim mesma) o que estava acontecendo.

— Por favor, Bekko. — Suplicou a jovem mãe, esquecendo qualquer tipo de formalidade ao se referir ao seu companheiro. Daquele ângulo, podia-se ver nada mais que suas pernas, mas pensei ter notado um rubor manchando os lençóis brancos. — Tire isso de mim.

Mesmo estando de costas para mim, o rei parecia tão desamparado quanto as criadas.

— Querida — disse ele, a voz mansa. — O curandeiro vai demorar de chegar. O parto deveria acontecer só daqui a dois meses. De nada podemos fazer sem...

— Mas está nascendo! — Interrompeu a mulher, com uma insistência agonizante, e agora mais rouca e mais fraca que antes. — Não consegue ver?

— Se você tentar respirar fundo...

— Eu não consigo... — Murmurou ela. — Eu realmente não consigo...

Mesmo quando ela já havia desistido, meu pai continuou a pronunciar palavras de incentivo, como sua última tentativa de convencer seu corpo a não ceder.

E bem no momento em que seus lábios emitiram um último suspiro entrecortado, senti uma mão leve empurrar meu braço, como se pedindo espaço para poder passar. Voltei a me esconder atrás de parede enquanto observava o homem de branco, que supus ser o curandeiro, adentrando o cômodo com uma pressa ingênua. Sem sequer soltar sua mala, ele posicionou o polegar no pulso da mulher, amassou seu tórax com as mãos algumas vezes, deu-lhe bebidas de diversas garrafas diferentes, mas seu corpo permanecia imóvel.

A verdade irredutível recaiu em suas cabeças. Todos dentro do quarto se uniram em um uníssono para entoar um breve canto à deusa Freya, para que levasse a alma da jovem mãe.

O curandeiro então sacou uma lâmina de sua caixa.

— Você está louco? — Perguntou meu pai. — Vai obliterar o cadáver de minha companheira?

— Vossa Majestade, perdoe-me, mas o bebê ainda está vivo, ainda que a mãe não esteja. Ele precisa sair.

Não houve tanta discussão. O rei apenas bufou, os punhos trêmulos e apertados. Então finalmente notou os olhos curiosos através da fresta da porta.

Quando se aproximou, pensei que me daria um belo sermão por ter visto tudo. Já estava recolhida, preparada para uma enxurrada de gritos, mas a porta simplesmente foi fechada, deixando-me em um corredor mais sombrio do que nunca.

As memórias daquele dia se dissipam um pouco mais a cada manhã, portanto, não sou a melhor pessoa para narrar essa história com tanta precisão e verossimilhança quanto ela merece ser narrada

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

As memórias daquele dia se dissipam um pouco mais a cada manhã, portanto, não sou a melhor pessoa para narrar essa história com tanta precisão e verossimilhança quanto ela merece ser narrada. Mas de uma coisa não consigo me esquecer: as badaladas do sino. Às oito e quarenta e seis da manhã, foi-se iniciado o trabalho de parto. Às onze e cinquenta e dois, o médico chegou. Durante cerca de trinta minutos, continuei encarando o labirinto em frente à escadaria onde estava sentada.

Era um de meus passatempos favoritos: o labirinto que circundava o palácio. As flores primaveris enfeitavam as paredes de murta, e mostravam suas pétalas vivas até nos cantos mais escuros.

— Princesa Oleandra —, chamou a governanta, íntima demais para me chamar de "Vossa Alteza", mas distante o suficiente para se lembrar de minha posição hierárquica. Todos os filhos do rei Bekko tinham uma governanta, uma pessoa para nos ensinar tudo o que precisamos saber, mas a minha era, de longe, a mais jovem e despreparada para o cargo. — O rei está te chamando.

Levantei de minha posição anterior como se algo estivesse controlando o movimento de minhas pernas. Era agora: ele iria gritar comigo, ou me trancar no quarto, como sempre fazia quando eu fugia de casa. E era isso que eu queria fazer: fugir.

Mas eu não conseguiria. Nunca havia visto um bebê antes, e minha curiosidade falava mais alto que qualquer rebeldia febril.

Quando abri a porta do quarto, o cadáver já havia sido removido. Torci para que lhe dessem um enterro digno: para que fosse deitada uma canoa, sua cabeça pousando em seda branca e seu corpo banhado de licor. Então, quando já estivesse distante da costa, uma tocha seria jogada em direção à canoa, que queimaria incessantemente e iluminaria a cidade inteira.

Eu preferiria me contentar com essa linda mentira que perguntar ao meu pai sobre o que fariam com o corpo. Isso se ele sequer soubesse a resposta.

O curandeiro e as criadas já haviam ido embora, e o que restou do cômodo foi uma cama vazia ao lado de um berço. Meu pai me olhou por alguns instantes, como se estivesse me vendo pela primeira vez, antes de comandar minha aproximação com uma das mãos.

— Pensei que gostaria de nomeá-la. — Suas palavras encheram meu peito de uma grande e súbita empolgação. — Teodas nomeou Yrhena. Gostaria de manter a tradição.

No fundo, eu sabia que ele simplesmente não tinha o tempo ou criatividade para nomeá-la. O único nome que ele havia escolhido foi o de meu irmão Teodas, mas só porque era o nome de nosso falecido avô.

Ainda assim, refleti sobre minhas escolhas como se estivesse decidindo o futuro do mundo. Aproximei-me da bolota de lençóis dentro do berço, onde um rosto ossudo retrucou minha curiosidade com um olhar frágil, mas atento.

Apesar de ser minha irmã, ela não se parecia comigo. Sua pele escura fez um grande contraste com minha mão amarela quando lhe toquei o nariz. Um chapéu de um cogumelo crescia no topo de sua cabeça, quase escondendo por completo os parcos fios crespos que nasciam acima de sua testa.

Mas aqueles olhos, aqueles globos brilhantes e atentos, eram meus.

Meu coração pareceu bater pela primeira vez.

— Primavera. — Murmurei. — O nome dela é Primavera.

O Fim de OstaraOnde histórias criam vida. Descubra agora