Capítulo 2

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O centro da cidade estava tão cheio quanto Aeg havia alertado. As laterais de meu corpo constantemente se esbarravam com alguma figura desconhecida que não se dava ao trabalho de ver quem acabou de empurrar, e eu me sentia na obrigação de apertar a mão de Primavera contra mim para não a perder de vista.

Ao menos, pensei, somos invisíveis para essas pessoas. Ao menos ali, tínhamos a possibilidade de esquecer nossos títulos.

— O que vamos fazer primeiro? — Perguntou ela, lutando para se manter audível contra a cacofonia ao nosso redor. Ajustei o capuz de meu manto, tentando impedir que o vento gélido o retirasse de minha cabeça novamente.

Meus olhos varreram o local. A lua se escondia em um véu escuro e espesso de nuvens, forçando-nos a contar unicamente com a parca iluminação que os postes de micélios bioluminescentes nos garantia. Alguns cidadãos do reino Fúngi também brilhavam, mas não passavam de exceções em meio à multidão. Pelo pouco que se podia ver, no entanto, muitas barracas cercavam o campo aberto, desprovido de construções.

— Poderíamos procurar algo para comer. — Respondi, e apontei para uma barraca iluminada em meio à neblina. — Parece que ali vende comida. O que acha?

— Ou... — Primavera apontou para uma longa fila em frente a uma barraca. — Podemos entrar nessa fila.

Ri de seu sorriso travesso.

— Por que você quer entrar em uma fila?

— Porque, se tem tanta gente reunida, deve ter algo muito interessante por trás desses panos.

— Você tem razão. — Ri novamente. — Se Vossa Alteza insiste, posso buscar algo para comer enquanto você guarda o nosso lugar.

Em menos de cinco segundos, a pequena já havia garantido o nosso lugar ao final da fila, enquanto eu me encaminhava para a outra barraca. Quando retornei, a fila já havia andado mais que a metade, e Primavera nem me esperou parar de caminhar para bisbilhotar a sacola de papel que eu tinha em mãos.

— Parece que é tradição comer ossos no Samhain, sabia disso? — Afastei suas mãos curiosas da sacola para que eu pudesse pegar um par de ossos. — Representa a morte como o alimento para a vida.

— E você descobriu isso como? — Primavera pegou um dos ossos de minhas mãos.

— Um velho bêbado puxou assunto comigo na fila.

Nós duas rimos em uníssono. Então, estendendo o pedaço branco em minha direção, ela disse:

— Um brinde à morte, então.

— E à vida. — Toquei meu pedaço no dela, pouco antes de colocá-lo entre os dentes.

Naquele momento, cometi o erro de pensar que eu poderia me acostumar com aquilo. Que poderia convencer Primavera a fugir comigo e viver assim para sempre: livre, em anonimato. Assim, eu nunca mais me sentiria sozinha novamente.

— Podem entrar. — Ouvi uma voz rouca de detrás dos panos ecoando em meus ouvidos.

— Sentem-se, por favor! — Disse gentilmente o ancião, sua bengala tremendo contra os dedos quando se sentou à nossa frente.

Luzes flutuantes bruxuleavam pela barraca. Eu nunca havia visto magia, mas sabia que era aquilo. Os panos violeta ao nosso redor eram os elementos mais coloridos do espaço, circundando uma mesa de centro escura e algumas almofadas de palha.

Primavera foi a primeira a se sentar, encarando rudemente o homem cego à nossa frente. Aquela figura era mais micélio do que estávamos acostumadas no reino: seu corpo inteiro parecia tomar a forma de cogumelo, com exceção dos braços, pernas e rosto. No entanto, apesar de seu formato estranho e de suas longas rugas, o ancião possuía uma certa beleza em suas feições e em seu sorriso bondoso, o que tornava a sua presença instantaneamente agradável. Seus olhos, porém, eram totalmente brancos.

O Fim de OstaraOnde histórias criam vida. Descubra agora