XI

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— Assim você vai quebrar seus dedos!

O reverberar dissonante de acordes aleatórios sendo tocados simultaneamente preencheu a sala quando a moça de cabelos negros apoiou os cotovelos nas teclas do piano, jogando a cabeça para trás.

— Eu sou horrível nisso!

— Empurre as teclas para dentro. Não precisa martelar; é Chopin... E você não pode ser horrível em algo que nunca fez antes.

— Fácil dizer quando você aprendeu a tocar antes de ter aprendido a falar, Magdalene.

Magdalene riu.

— Isso não é verdade.

O som dos acordes dissonantes deram lugar a um barulho agudo quando a moça que exibia grossos cabelos negros soltou o pedal direito e levantou-se, arrastando a banqueta para trás. A sala de música tinha um cheiro nostálgico que remetia à infância, alguma mistura irreconhecível de especiarias. Grânulos de poeira branca dançaram pelo ar abafado do cômodo quando as cortinas balançaram com a lufada de vento que entrou pela fresta aberta de uma das janelas. Um lustre de cristal pendia do teto de madeira, refratando raios do sol preguiçoso de tarde numa pintura de Artemis, os arcos-íris quase estáticos sobre as pinceladas na tela.

— Papai disse que esse prelúdio é encantador, mas duvido que sequer pensaria em me ouvir tocá-lo. Ele diz que eu não faço nada direito.

— Você não deveria dar ouvidos a ele, Florence — Magdalene iniciou, levantando-se da poltrona cor de creme.

Florence virou-se em direção à amiga, tentando esconder os olhos marejados.

— Eu queria ser a filha de quem ele um dia se orgulharia.

— Ele se orgulha de você, só é covarde demais para admitir — Magdalene disse.

— Seu pai parece sentir muito orgulho de você. — a outra murmurou, baixo o suficiente para que ninguém além dela pudesse ouvir.

Naquele momento, Florence sentiu traços de inveja se agitarem dentro de si. Uma cólera doentia que a fez, por uma fração de segundo, odiar Magdalene. Por tudo que ela tinha. Por tudo que ela era. Os bailes, os pretendentes, a graciosidade... Mas o que mais a exasperava era a disposição que a amiga aparentava para abdicar de tudo aquilo – provavelmente para se entregar a uma vida intelectual nas sarjetas, pensou –, a simplicidade com a qual admitia querer ter nascido em outra família, apesar de amar o pai. Claro, o pai. Isso era o que ela mais cobiçava: faria de tudo para ter um pai como o de Magdalene, um pai que destruísse a própria reputação para colocá-la em um pedestal. E que não ignorasse sua existência.

Florence encarou as costas da amiga como nunca antes havia encarado. Havia algo de estranho agitando-se dentro de si, um sentimento desconfortável e intruso que a tentava a coisas certamentes condenáveis, ainda que ela não soubesse dizer o quê.

Antes que pudesse enxugar uma lágrima teimosa que lhe descia a bochecha, um mordomo adentrou a sala e, apoiando a bandeja de prata que carregava sobre uma mesinha, deixou o cômodo sem mais do que uma mesura contida.

Sobre a bandeja, duas xícaras de porcelana chinesa repletas de chá fumegante e, como de costume, o jornal. Dessa vez, no entanto, a manchete parecia querer chamar mais atenção do que o usual, com letras garrafais exageradamente extensas marcando um título evidentemente escandaloso.

O Cisne do SubmundoOnde histórias criam vida. Descubra agora