casa

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Liz passou pela secretária prendendo o ar, e só se permitiu voltar a respirar depois de sair da recepção do colégio.

Ela tinha certeza que a velha mulher de olhos escuros e cabelo repuxado que sentava atrás do computador no balcão da secretaria percebia algo de errado nela, e estava de olho para o primeiro movimento suspeito.

Parecia desconfiar de que a menina traria uma faca, ou uma bomba, para dentro da escola. Liz nunca faria isso.

Mas sabia atirar. E poderia, se quisesse, fazer uma bomba. Talvez a secretária percebesse o perigo potencial que cercava Liz vinte e quatro horas por dia.

Apertou a mochila contra as costas e respirou fundo mais uma vez, aumentando a sensibilidade do aparelho auditivo. Na rua movimentada, era raro ouvir os chiados e sussurros, e os perigos eram outros.

Não que ela fosse ser sequestrada, mas não valia a pena correr o risco.

Seguiu andando pela calçada, antes de descer a escada para a estação de metrô. Estar sob a terra a deixava ligeiramente claustrofóbica.

"Nada de ruim vai acontecer, nada de ruim vai acontecer", repetia seu mantra incessantemente. O teto não ia desabar. Ela não morreria soterrada.

Pelo canto do olho, viu um vulto disforme e desolado.

"É inofensivo", murmurou para si mesma. Era apenas uma das Sombras. Se forçou a focar no homem abaixo dela. Ele parecia mais morto do que vivo.

Liz se abaixou diante dele, e, abrindo a mochila, estendeu um pacote de bolachas.

Quando o homem olhou pra cima, Liz percebeu que ele era muito mais novo do que parecia. Talvez não tivesse trinta anos.

-- Pega. -- Ela tocou o pacote de bolachas na mão dele. -- Espero que goste de morango.

A menina se levantou, fechando a mochila e a abraçando. O homem não disse nada, mas abriu o pacote lentamente, e colocou um biscoito na boca sob o olhar atencioso da menina.

Quando ergueu o rosto, sua expressão parecia menos sofrida. Liz abriu um sorriso para o homem e se afastou, se enfiando em um dos vagões de metrô antes que as portas fechassem.

Sua mãe sempre sorria quando ela fazia esse tipo de coisa. Costumava dizer que Liz tinha isso nela. Era boa por natureza.

Ser boa. Isso era algo que Liz não entendia. A mãe também era boa, se ser bom fosse só cuidar dos outros. Elizabeth fazia isso o tempo inteiro.

Mas morrera achando que não prestava. Que era um ser humano ruim e egoísta. As vezes, Liz queria poder acordar a mãe só uma vez, pra abraça-la e dizer que sabia que ela era boa.

Mas a mãe não teria acreditado, de todo jeito.

Ver a filha cuidando dos outros, porém, a fazia feliz. Como se tivesse orgulho.

"Você, meu amor, foi a única coisa certa que eu fiz na vida".

Liz não acreditava nisso, a mãe tinha feito muita coisa certa na vida dela. Mas era o jeito estranho de Elizabeth de dizer que a amava.

Desejava tanto que pudesse ouvir a voz da mãe de novo, repetindo aquelas mesmas palavras para si mesma antes de dormir, imaginando que a filha já estava ferrada no sono.

Mas a mãe tinha morrido. Morrera havia quase dez anos. E Liz estava sozinha.

"Bom, não sozinha", pensou consigo mesma quando viu a silhueta da gata na janela do apartamento, esperando a menina chegar em casa.

Sua barriga roncava, e já havia passado quase uma hora da hora do almoço. Liz ainda tinha que subir oito andares inteiros antes de poder dizer "cheguei em casa".

Por isso, ajeitando a mochila nos ombros, começou a subir, degrau por degrau, a escada de seu prédio.

Um. Dois. Três. Quatro, cinco, seis. Sete... Oito.

Quando empurrou a porta e saiu no corredor do oitavo andar, estava morta, e precisou de muito esforço para se arrastar até seu apartamento.

Enfiou a chave na fechadura e abaixou o trinco, entrando na sala que aprendera a chamar de lar.

O apartamento não era grande. Com certeza não fora feito para a quantidade de gente que morava lá. Mas ela não se importava.

Jogou a bolsa numa cadeira e se deixou cair no sofá, batendo a porta da frente. O cheiro de limpeza, a sensação. Amava aquilo.

A barriga rondou de novo, e ela desviou o olhar para o balcão, se questionando se valia a pena levantar e comer imediatamente.

O prato e o copo já estavam lá. Só precisaria pegar a comida.

A gata tomou a decisão por ela. Se deitou sobre sua barriga, se enrolando e ronronando.

-- Oi, Jennifer. -- A menina sorriu, fazendo carinho no bichinho.

Era seu destino aparentemente. Ficaria no sofá até que a gata saísse. E Jennifer não parecia disposta a se mover tão cedo.

Os Que Ficam Pra TrásOnde histórias criam vida. Descubra agora