manhã de sábado

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Liz acordou com o pai assobiando a música favorita da mãe. Era um jeito gostoso de acordar. Ela desejava que pudesse acordar assim sempre.

Lentamente, a garotinha se sentou e esfregou os olhos com os punhos, tentando afastar o sono. Tinha sonhado com algo que já não se lembrava mais, o que a irritava um pouco. Não gostava de não lembrar das coisas.

Engatinhou até a beira da cama, tentando escapar dos cobertores emaranhados, e se sentou na bordinha do colchão, balançando os pezinhos no ar antes de escorregar para fora e cair no chão do quarto.

Se orgulhava de sua habilidade precoce de, aos quase quatro anos, descer da cama alta sozinha.

Foi meio andando, meio se arrastando, para fora do quarto escuro, em direção ao feixe de luz que entrava pela fresta da porta.

Atravessou o corredor lentamente, passando os dedinhos pela parede branca, e fazendo força para se lembrar do que sonhara. Então, se deparou com sua cena favorita no mundo todo.

O pai assobiava, e dançava lentamente com a mãe no meio da sala, os dois de meia e pijama, Elizabeth com o rosto escondido na curva do ombro de Thiago.

Liz se soltou da parede e correu até os pais, abraçando as pernas dos adultos que mais amava no mundo.

Quase que num salto, Elizabeth se afastou do namorado, meio assustada. Liz sabia, sabia mesmo, que a mãe não gostava de demonstrar o que sentia pelo pai na frente de outras pessoas. Tinha dificuldade com isso. E chegar do nada talvez não tivesse sido a melhor escolha.

Mas Thiago não pareceu se importar. Ele pegou a filha no colo e abriu um sorriso largo para a garotinha, que pôs as mãozinhas nas bochechas dele, deixando os dedinhos brincarem com os fios de barba nascendo que pinicavam a pele sensível das palmas, ou com a nova cicatriz, que vinha da orelha esquerda até o meio da bochecha do pai.

Há um mês atrás, ele não tinha aquela marca.

Ela surgira na última missão dos pais, uma missão perigosa, que durara vários dias.

Quando eles voltaram para casa, a mãe estava abalada, e o pai, com aquela cicatriz.

Desde então, ele nem sempre ouvia direito. Por isso, Liz começara a aprender com a mãe um novo tipo de código: linguagem de sinais.

Mas, naquele momento, não importava.

O pai estava dançando com a mãe na sala, e assobiando. E tinha pego ela no colo.

-- Dança comigo, minha princesinha?  -- Ele perguntou, em seu melhor sorriso de galã.

-- SIM! -- A menininha gritou, animada, e Thiago não perdeu tempo, girando e murmurando os trechos de música que Liz mais gostava.

Elizabeth, no sofá, observava silenciosa os dois seres que mais amava no mundo serem bobos juntos, e sorria. As vezes, ela se perguntava como tinha tido tanta sorte, tendo os dois ali, pra si.

Sua filha. Seu Thiago. Um sentimento egoísta se acendia em seu peito toda vez que olhava para eles. Orgulho. Amor.

-- Ô, Liz, minha querida! -- Ela ouviu Thiago chamando seu nome, naquele jeito meio cantado, aquele sotaque só dele.

-- Fala, Thiagão. -- Elizabeth ficou os olhos do homem que estendia uma mão pra ela, imitando o gesto da filha.

-- Vem dançar com a gente mamãe! -- A pequena Liz sorriu aquele sorriso do Thiago, que derreteu o coração de Elizabeth.

A mulher se levantou, passando os dedos pelos fios pretos e emaranhados, e abraçou Thiago, prendendo a filha entre os dois gentilmente.

E deixou que o namorado a levasse, a girasse. Se deixou perder naquele riso e naqueles braços.

-- Sabe, mamãe, papai disse que vai fazer panquecas depois!

-- Ah, ele não vai não, ele vai queimar tudo! -- Ela riu.

Alex. Daniel. A culpa que a perseguia havia semanas mal começara a enfraquecer. Talvez nunca a deixaria por completo. Mas tudo o que conseguia pensar era que a filha teria adorado conhecer os dois. E que eles a teriam amado.

E, naquele momento, naquela manhã. Com a filha nos braços e o namorado dançando com ela na sala banhada pela luz do amanhecer, ela foi feliz, pela primeira vez dias.

Os Que Ficam Pra TrásOnde histórias criam vida. Descubra agora