ruído branco

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O chiado tinha começado de novo. Ela odiava isso.

Liz deu batidinhas em seu aparelho auditivo, tentando fazer o chiado parar. Mas não era o aparelho que chiava, e ela sabia disso. Era o próprio mundo.

Mas ela estava no meio da aula. Não podia simplesmente ligar a música num volume mais alto que o chiado do mundo e esquece-lo até que ele parasse.

Desligar o aparelho que permitia que ela ouvisse com clareza também não era uma opção. Se fizesse isso, o chiado apenas ficaria mais alto mais nítido: começaria a formar palavras incompreensíveis e bagunçadas. Mas era impossível prestar atenção a qualquer outra coisa quando o chiado começava.

Por isso, desistiu de prestar atenção na aula, e puxou o caderno de capa preta da mochila. Ali dentro era onde ficavam guardados seus maiores segredos, escritos em códigos ou criptografados em desenhos obscuros.

Escrever em código era seu passatempo favorito. Fazia com que ela lembrasse da mãe. Aprendera a escrever em código antes mesmo de aprender a escrever com um alfabeto normal.

Talvez fosse por que sua mãe era paranóica. Talvez a Elizabeth-mãe simplesmente gostasse tanto de códigos quanto a Elizabeth-filha. Fosse o que fosse, escrever em códigos a fazia se sentir mais próxima da mãe.

E talvez ela precisasse dessa proximidade mais do que nunca, pois sentia que, como a mãe, tinha começado a ficar maluca.

O paranormal sempre deixa as pessoas meio loucas. Ela sabia disso muito bem.

A mãe nunca mais tinha sido a mesma desde a morte do pai. Pensando bem, cada vez que voltava de uma missão, ela parecia diferente. Mais traumatizada. Mais assustada. Mais paranóica.

Liz nunca tinha ido a uma missão. Aos dezesseis anos, era nova demais para isso. Mas sentia os efeitos do paranormal mesmo assim. Ele cercava sua vida.

Abriu o caderno, folheando páginas amareladas cheias de runas e rabiscos à caneta até achar uma vazia.

Então, desligando-se do mundo, permitiu que sua mão agisse livremente, dançando pelo papel até formar seu traço irregular e incerto, construindo rostos e corpos e expressões de terror ou êxtase.

Seus desenhos eram sempre escuros, sempre sádicos. Alguns até mesmo masoquistas, a glória e a dor andando lado a lado. Mas, de algum jeito, na maioria deles ela conseguia inserir um elemento pequeno, mas claro, de esperança e equilíbrio. Uma porta aberta, uma chave, uma saída, ao alcance da mão.

As vezes, ela conseguia produzir um desenho cheio de luz e calma, e eram sempre esses os que ela mais gostava.

Não que ela fosse problemática. Não era. Bom, talvez um pouco. Aquele caderninho preto era o que guardava seus desenhos estranhos e perturbadores.

Em casa, enchendo as margens de livros de escola e lotando paredes e blocos infinitos, ela tinha desenhos em aquarela e lápis de cor, retratando a beleza que ela sabia muito bem copiar do mundo.

Mas ali, naquele caderninho de capa de couro preto e páginas envelhecidas, aquele era o caderno dos desenhos que não eram dela. Ela sabia que as impressões que surgiam eram quebra-cabeças, sussurros desconexos que vinham do chiado constante em sua mente.

E, em seu caderno, ela inconcientemente pegava esses sussurros e transformava em trechos claros, que pouco a pouco iam se desdobrando diante de seus olhos curiosos e dedos inquietos.

Página por página, ela criava um manual, um guia, para si mesma. Um mapa que mostrava os caminhos e as regras de um lugar que ela desejava visitar de novo, e que ao mesmo tempo temia.

Aquele caderno era uma janela que permitia olhar através da Membrana, um diário onde lentamente todos os segredos do Outro Lado se revelavam.

E era Liz sua guardiã mais fiel e dedicada.

Os Que Ficam Pra TrásOnde histórias criam vida. Descubra agora