o comeco da mudança

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Três semanas.

Fazia três semanas desde a última vez em que ouvira a voz da mãe.

Um tipo estranho de sensação, que nascia no fundo do peito e pesava como se fosse feita de chumbo, dizia que a mãe tinha morrido. Ela odiava essa sensação. E, infelizmente, parecia que essa sensação a amava, pois vinha perseguindo-a ja fazia varios dias.

Liz respirou fundo e enxaguou o prato antes de colocá-lo no escorredor e descer da cadeira que tinha colocado na frente da pia.

Apertou os olhos e balançou a cabeça com força. Ela não tinha tempo de ficar triste. Se ficasse triste, pararia de fazer as coisas que precisava fazer para sobreviver. Passou a mão meio molhada no rosto e começou a arrastar a cadeira de volta pra mesa de jantar.

Passou mentalmente a lista em sua cabeça. Tinha lavado as louças. Colocado os uniformes para lavar, do jeito que a mãe a ensinara a fazer. Sua mochila estava arrumada. Passara a semana inteira e sua professora nem desconfiava de que a garota estava completamente sozinha no mundo. Repetira com perfeição tudo o que fazia parte de sua rotina normal.

Era sexta feira. Era noite. E, mais uma vez, ela estava totalmente sozinha. Seu peito apertou mais, e um nó começou a se formar em sua garganta, tão apertado que doía.

A menina se jogou no sofá, abraçando uma das almofadas em busca de consolo. Ela era jovem demais para viver sozinha. Seis anos. Só seis anos. Sabia que conseguia se virar. Mas sentia falta da mãe.

Se sentia perdida, assustada. Até o escuro do lado de fora começava a parecer perigoso.

Talvez... Talvez ela não tivesse mais para onde ir.

Se encolheu no canto do sofá, o mais longe possível da janela, e ligou a televisão.

Tentou assistir os programas que costumava ver com a mãe, mas era como se não ouvisse nada. Sua visão ficou embaçada por lágrimas que se formavam, e ela se encolheu mais, se transformando em uma bolinha cor de rosa.

Se deixou chorar, sem fazer barulho, apertando a almofada contra o peito, tentando sentir o cheiro da mãe naquele sofá. Mas o cheiro já tinha ido embora. E sabia que sua mãe também.

Quando abriu os olhos, já era de manhã.

Em algum ponto, tinha dormido, e a televisão permanecia ligada, passando um programa aleatório sobre os oceanos.

Esfregou os olhos e se esticou, sentindo os membros rígidos por ter dormido enroladinha com o um tatuzinho de jardim.

Talvez ela devesse chorar mais vezes, pois agora sua mente parecia um pouco mais clara, e seu coração estava bem mais leve.

Saindo do sofá, a menina andou até o banheiro para lavar o rosto. Olhou para a foto presa no espelho. Ela e a mãe. Era uma selfie que Elizabeth tinha tirado, quando Thiago ainda era vivo.

As duas escovavam os dentes, e cada uma vestia um dos moletons do pai de Liz.

A menina tirou  a foto do espelho e saiu com ela, colocando-a no bolso da frente da mochila.

Então, abriu a geladeira, e se esticou para pegar um iogurte e a manteiga.

As próximas ações foram quase mecânicas.

Arrastar a cadeira até a cozinha, por o pão na torradeira, pegar o prato e por na mesa, pegar um copo, servir suco, pegar o pão, passar manteiga, mastigar e engolir.

Tudo foi feito sem muita atenção. Sua cabeça estava muito, muito longe.

Mas, quando colocou o prato na pia e se ajoelhou na cadeira para lavar a louça, a menina estava decidida a seguir a ideia que tinha na cabeça.

Se sentia perdida, então, iria para o lugar que a ajudaria a pensar.

Os Que Ficam Pra TrásOnde histórias criam vida. Descubra agora