14 Viagem

490 66 64
                                    

Judy

As pessoas levavam mesmo a sério o negócio do festival ali, ou talvez porque eu estivesse diretamente envolvida, de todas as pessoas com quem conversei, todas repetiam que sem o Bo, nada daquilo poderia acontecer. Eu podia sentir o carinho com que falavam dele, como o olhavam, como confiavam nele.

Eu nunca tive alguém assim, minha vida foi sempre uma grande solidão, eu não podia ser livre demais, nem a escola eu frequentava por conta das viagens de meu padrasto. Se eu soubesse o que ele pretendia, talvez eu pudesse ter fugido muito antes de tudo aquilo acontecer.

***

Ian contou que os pais das meninas alugaram um ônibus para levar tudo. A primeira ideia era que ele fosse com John no carro de polícia seguindo o ônibus, mas, John conseguiu que isso não fosse necessário também.

Então, as onze da manhã estávamos embarcando em um ônibus cheio de mães orgulhosas, pais babões e meninas super confiantes.

Marisa me puxou para a parte de trás assim que entrei. Bo continuava do lado de fora esperando alguém parecer enquanto falava com John. Eu sabia que ele estava nervoso, chegou a me contar que os crimes que cometeu foram na cidade para onde estávamos indo, inclusive, ele havia sido preso lá.

As vezes eu esquecia disso, de que ele tinha tantas restrições por já ter cometido erros no passado, mas vendo-o daquele jeito, o cara que ensina menininhas a dançar e que mais tarde iria estar com uma camisa coberta de glitter... Simplesmente, ele era a melhor pessoa do mundo.

***

Ian

⸻ Não conseguiu mesmo convencer o Sully a ir? ⸻ Perguntei a John do lado de fora do ônibus.

Ele riu como se não esperasse a pergunta.

⸻ Ah ele saiu ontem, disse que vai chegar a tempo, Marisa fez uma mala de comidas para ele.

Gargalhei, já devia saber, Sully não entraria em um ônibus de jeito nenhum.

Parei de rir quando ele me encarou com sua carranca, e por cima de meu ombro apontou para alguém específico dentro do ônibus.

⸻ Namorada?

Respirei fundo. Porque todo mundo gostava tanto de nomear as coisas?

⸻ Mais ou menos isso. ⸻ dei de ombros.

⸻ Lis disse que é.

⸻ Então ótimo, acho que uma garotinha de cinco anos sabe mais disso do que eu.

Ele riu ⸻ É acho que sim.

Não estava muito a vontade de falar com ele sobre aquilo, ele sabia muito bem que eu não tinha contato com pessoas, e imagino que a tivesse reconhecido da foto na ficha.

⸻ Você...

Ele a encarou outra vez e me deu seu sorrisinho de lado.

⸻ Não vi e não sei de nada...

Soltei o ar querendo agradecer.

Finalmente o pai atrasado da Cris chegou, nos cumprimentou rapidamente e entrou no ônibus.

John bateu de leve nas minhas costas e entramos também. As meninas gritaram de expectativa, e passei pelo corredor tocando as mãos de cada uma delas até o meu lugar no fundo ao lado de Judy.

⸻ Isso é tão divertido. ⸻ disse ela baixinho, se ajeitando no banco.

Sorri me inclinando para ela. ⸻ Vamos ver se diz isso quando eles começarem a cantar musiquinhas de estrada.

⸻ Aposto que também é legal. ⸻ parou de falar como se verificasse se alguém podia ouvir. ⸻ Mari disse que reservou um quarto pra gente.

Segurei seu queixo lhe dando um beijinho. ⸻ Não é como se nunca tivéssemos dividido a cama. ⸻ Aproximei minha boca de sua orelha. ⸻ Mas vai ser bom mudar o ambiente. Soube que tem banheira.

Ela se afastou um pouco para conter os arrepios, depois encostou sua cabeça em meu ombro. Passei o braço por suas costas. ⸻ Estou feliz que está aqui.

⸻ Eu também.

****

Algumas horas de estrada, cantorias e danças no corredor do ônibus depois, chegamos a cidade.

As meninas correram para fora, estávamos parados diante de um hotel modesto mas que nos acomodaria muito bem, além de ser bem em frente a praça onde o evento aconteceria. Lis pulou nas minhas costas apontando o palco.

⸻ Bo, olha lá, a gente vai dançar naquele palcão!

Sorri a levantando nos ombros. ⸻ Espero que não fique nervosa, protagonista, a gente vai ganhar esse negócio, não vai?

Ela fez que sim com a cabeça e a coloquei no chão para se juntar as outras.

Olhei para a praça enfeitada, as barraquinhas sendo preparadas para a noite, aquelas pessoas todas se empenhando para tudo acontecer. E eu estava ali, de volta e com uma grande responsabilidade. Uma que não podia ser medida pelo peso na minha perna, ou nas lembranças das pessoas que prejudiquei ali. Eu estava me convencendo de que daquela vez eu merecia algo bom com a dança. As meninas mereciam. Não tinha dado certo para mim, ou para minha mãe, mas para elas daria, e eu estaria ali para garantir isso.

Olhei para Judy e por um momento ela pareceu entender meus pensamentos, porque veio até mim sem dizer nada e apenas apoiou a cabeça em meu ombro, entrelaçando nossos dedos.

Será que ela voltaria para casa comigo? Ou será que seguiria para outra fuga a partir dali?

Queria saber, porque me despedir dela era tão difícil por telefone, mas pessoalmente era mais doloroso e eu queria estar preparado.

Mas não consegui perguntar, fui covarde o suficiente para ficar calado.

⸻ Bo! ⸻ a voz de John me tirou do transe, e puxando Judy comigo, fui até ele. ⸻ Hotel, ⸻ apontou. ⸻ e lembre-se que a tolerância desse negócio é de dois quarteirões, nem pense em passeios maiores que isso ou teremos problemas.

Engoli em seco. ⸻ Eu sei.

Meu tom melancólico deve ter mexido com ele, porque logo depois do aviso nada sutil, ele bateu em minhas costas.

⸻ Falta pouco, garoto. Você merece ficar bem.

Não respondi, apenas olhei a praça enorme a minha frente.

⸻ A praça toda tá inclusa?

Ele riu. ⸻ Quase milimetricamente calculada pelo juiz. Você vai ficar bem.

⸻ Obrigado, vou guardar as coisas e acho que tenho que começar a produzir as meninas.

⸻ Vai lá, garoto. ⸻ se voltou para Judy e sorriu.

Peguei nossas bolsas e seguimos Marisa para dentro do hotel, as reservas tinham sido feitas por ela, e tínhamos um corredor inteiro para nós.

O quarto era espaçoso, e claro que Judy não se impressionou, deve ter passado muito tempo em lugares como aquele, não devia ser uma vida tranquila, eu também não fazia ideia se uma vida tranquila era o que ela queria, na verdade.

⸻ Acha que elas podem vencer? ⸻ sorriu se sentando na cama.

Me joguei ao lado dela. ⸻ Não sei, mas estarem aqui já significa muito para elas. ⸻ dei de ombros rindo ⸻ Quer dizer, elas nem tem um estúdio, treinam num galpão com um professor duvidosamente preparado.

⸻ Mais um motivo de orgulho então. Sobre o estúdio posso concordar, mas sobre o professor... Acho que não teria um melhor.

Ergui uma sobrancelha esperando por uma piada, mas ela não era o tipo de garota que fazia esse tipo de coisa.

⸻ Tá bom, já inflou meu ego, bora lá embaixo comer alguma coisa? Daqui a pouco vamos ter que ir arrumar as meninas.

Ela concordou e descemos para o restaurante do hotel onde várias mesas eram ocupadas por vários outros grupos, só de olhar para aquelas crianças, eu já sabia que teria que preparar as meninas para um possível último lugar, mas não seria sem lutar...

Se dessa vez Você Ficar Onde histórias criam vida. Descubra agora