336 horas após o incidente
96 horas após o comaTic-tac, tic-tac...
Vazio... total vazio...
...tic-tac, tic-tac...— ...E pode abrir os olhos.
O som do relógio de bolso para e eu abro os olhos como pedido e como ansiava, livrando-me da total escuridão e vazio que me engolia com as pálpebras fechadas.
— E então, como se sente? — Benjamin pergunta ansioso do outro lado da sala.
Sentindo-me desanimada e extremamente aborrecida, balanço a cabeça em gesto negativo.
— Como acordei. Sem memória alguma. — Encaro o chão evitando de olhar seus olhos cor de poeira que deixam claro pela sua idade, que dizem que já viu de tudo, de tudo um pouco dos casos que já teve de cuidar. O psicoterapeuta me olha de forma um pouco desapontada mas sem nenhum julgamento.
— Isso é um caso complicado... — Ele diz em um suspiro enquanto guarda o relógio de bolso usado para a hipnose de tentativa para recuperar alguma memória minha. O relógio dá o seu último e reluzente fleche de luz ao sol antes de desaparecer no bolso de seu jaleco. Ele olha para mim por um curto momento antes desviar o olhar para a mesa de centro entre nós — Benjamin, consegue trazer os copos para mim? — Ele pede, tranquilamente.
E como mandado, Benjamin pega dois copos do balcão ao seu lado, ele os traz e os coloca na pequena mesa entre nós. Um bafo quente e um aroma agradável e saboroso sai deles.
— O cheiro lhe agrada? — O psicoterapeuta me analisa — Nestes copos há chá e café expresso. Pegue-os e experimente, e me diga, qual a agrada mais?
Olho para ele de maneira esquisita. Como aqueles simples copos de bebidas do cotidiano de qualquer pessoa podem fazer minha memórias voltarem? O que copos de chá e café podem fazer por mim? Qual é o jogo entre nós?
Depois de anteontem, passei a frequentar o psicoterapeuta do hospital, mas sinceramente, não acho que esteja dando frutos o que os médicos plantaram. Claro, deve ser por que também fui obrigada, até porquê, não ir é como seu eu não estivesse me ajudando e não estar me ajudando é querer que eu permaneça sem memória, sem identidade, permanecendo um espírito sem nome e sem vida. não pareço ser uma pessoa que gosta de se abrir, não gosto de responder as perguntas que aquele homem faz. Não gosto de estar aqui.
Mas quem sou eu para dizer qualquer coisa que seja ou reclamar? Sou apenas uma paciente que segue ordens para se manter viva, para sobreviver ao caos que começou há três dias — contando com hoje.
A sessão de ontem foi mais para nos conhecermos melhor, mas no meio da conversa profunda que fluía entre nós, eu já havia percebido que algo estava errado, mas não era com o hospital, com os médicos que me examinavam e tiravam diversos diagnósticos e me davam diversos resultados que não fazia esforço para entender, nem com o psicoterapeuta e muito menos com o meu enfermeiro. O erro era comigo. Um vazio, uma imensidão. O escuro total. Tudo preso dentro da minha mente.
Eu não sentia nada quanto àquilo tudo que estava ocorrendo à frente dos meus olhos, talvez eu não consiga nem ter algo próximo de noção, se me perguntassem se eu sentia medo, responderia que não – apenas nos primeiros segundos que eu abri os meu olhos — hoje só consigo pensar em como as coisas chegaram a este ponto?
E não há quem entenda meu caso ou que tenha as respostas que quero. A desconfiança é algo normal, eles disseram, mas por algum motivo sinto que certas questões são ocultadas de mim. E a confiança é um poço vazio como o meu subconsciente.
A psicoterapia me ajudaria a me lembrar de tudo o que houvera, mas não é o caso. Perda de memória é algo frustrante, mas se esquecer de sua vida inteira, acordar e perceber que tudo o que provavelmente viveu foi um vazio, uma imensidão sem nada. É quase exagero – talvez para mim que sou a vítima aqui e sou eu que sinto o nada dentro de mim.
Observo os copos à minha frente e suspiro, os olhos do psicoterapeuta e de Benjamin fazendo pressão sobre a minha vontade de nutrir confiança e esperança com algo que não tenho ideia de como daria certo.
Dou de ombros e pego o copo que provavelmente tem chá e dou um gole. Faço uma careta com o gosto amargo e, ao mesmo tempo, doce que passa pela minha garganta. Com rapidez, pego o copo de café mais sedenta para tirar o gosto terrível da minha boca. O gosto do café cremoso é um pouco mais amargo do que doce e me agrada, ele é mais forte e mais saboroso e não há um gosto terrível e estranho. Continuo com o copo de café em minhas mãos, ao contrário do chá que logo larguei sobre a mesa.
Marshell olha para mim ansioso com uma sobrancelha erguida.
— Eu não gostei do chá. Tem gosto de grama.
— E você já comeu grama para saber se tem realmente gosto de grama? – As rugas de seus olhos e de seu rosto de homem na casa dos 60 se franzem e ele sorri, tão diferente de Benjamin com a juventude tão esbelta que parece uma criança quando sorri. Me permiti sorrir, um sorriso sem graça e talvez um pouco forçado.
— Você sabe que eu não posso responder sua pergunta – Digo ainda sorrindo – Mas pode ser uma boa teoria, vai que eu já tenha feito isso em alguma era?
Os dois homens da sala dão uma risada curta.
— Pode ser, sim. Então, vejo que o café lhe agradou mais...
— Sim – Franzi as sobrancelhas novamente – Mas eu não entendo, o que isso tem a ver com as minhas memórias?
— Fácil; em alguma hipótese, pode disparar alguma memória, mas agora estamos buscando entender...entender mais sobre você. Seus gostos, suas preferências. Você mesma disse. Disse que não se lembrava de quem era. Então, se você não pode se lembrar de certas coisas, por que não pode redescobri-las ou até descobrir coisas novas? – Ele escorou as costas em sua cadeira estofada e focou seus olhos claros em mim com seriedade como se estivesse realmente me estudando – Isso não só depende de seu subconsciente. Isso também depende de você. Entende?
Balanço minha cabeça em gesto positivo em resposta.
— Que bom. Lhe espero na sessão de amanhã, tenha uma boa tarde. – Ele diz sorrindo – Enfermeiro, conduza sua paciente ao seu quarto. – Ele vira-se para Benjamin que estava escorado na parede do outro lado da sala.
Benjamin me ajuda a levantar da poltrona e as dores pelo meu corpo todo atacam novamente. Ele puxa minha mão e a segura, quente e sensível, ele me acolhe nas suas. Seu ato me obriga a lembrar da memória ainda fresca de ontem, o primeiro dia de uma vida que não voltaria a ser a mesma por um bom tempo. O dia em que acordei sentindo a pior dor que alguém poderia sentir. A dor de ter perdido completamente a memória de quem quer que eu seja.
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Caçadores de Memórias
Misteri / ThrillerO que você faria se perdesse completamente a sua memória? A resposta está com uma jovem que aparece misteriosamente em um hospital após um acidente intrigante que ninguém sabe a origem. E que após um terrível e doloroso coma, descobre que sua am...