Um tapa foi desferido em minha bochecha, que me fez acordar e sentir uma dor de cabeça latejante. Pela natureza do acontecimento, que parecia com o que eu havia vivenciado um pouco mais cedo, senti um alívio. Pensei que tudo que havia ocorrido era um sonho ou uma alucinação, e que o tapa me acordara daquilo.
O meu maior desejo era abrir os olhos e me deparar com o quarto bagunçado e o gato, da minha kitnet, na Zona Leste de São Paulo. Infelizmente, não foi o que aconteceu.
O velho, daqueles flashes de imagens que tive antes de ser afogado, encontrava-se sentado na minha frente, com uma carranca. Carregava consigo uma bandeja, com uma caneca que saía fumaça e um papel, que não pude identificar do que se tratava.
Caralho, não era um sonho.
— Está sentindo febre? — indagou.
Assustei-me. Mesmo com o sotaque carregado, o seu português era perfeitamente entendido por mim.
— Fala minha língua? Como?
— Bem, sei que não é a sua língua natal, mas é a que o senhor adotou como língua. Desde quando te salvei daqueles homens de preto até agora, tenho falado português.
Empertiguei-me na pequena cama. Como me conhecia tão bem se nem tínhamos nos falado ainda?
— Calma, rapaz, não se assuste. Não sou nenhum perseguidor ou pessoa que lhe fará mal. Pense em mim como um amigo, que te conhece há um tempo e que te ajudará a sair da vista daqueles homens de preto.
— Não tem como não me assustar, senhor. Não sei nem se essa nossa conversa é real. Porque, como tudo que vivi hoje, parece ficção. — Cocei minha cabeça, manifestando incômodo.
— Esta conversa é real, você sabe disso. Até a previu, um pouco antes de nos encontrarmos.
Calei-me, ainda mais incrédulo. O velho sabia até das imagens que pularam na minha cabeça, como pipoca.
— Sabe até do que se trata esses papéis aqui — continuou, retirando os papéis da bandeja e colocando-os na palma da mão. — É uma passagem para o Vaticano e um mapa que te levará até um amigo, que te protegerá e o levará até o aeroporto.
— Vaticano, senhor? Não era mais fácil me mandar direto pro Brasil?
— Por ora, não. Confie em mim. O meu grande amigo irá contigo até o Vaticano, cuidará de sua proteção e, então, vai te mandar de volta ao Brasil.
Foda-se o que ele falava para mim. Poderia trocar as passagens para o Brasil, sem muitos problemas — eu acho. Mesmo que precisasse de dinheiro para cobrir, poderia roubar de alguém, não sei. Não tenho orgulho de algumas coisas que fiz no passado, mas os roubos que cometi sempre foram por questão de sobrevivência.
— Não pense em trocar essas passagens ou roubar alguém. Eu saberei, como o senhor conseguiu saber de mim sem antes nos conhecermos. Ah, e lembre-se, fui eu quem te salvei. Pode ser eu quem te tire o privilégio da vida. — Arqueou a sobrancelha e me entregou o chá.
A frase fora assustadora de tantas maneiras diferentes que nem sabia como me assustar. Começava a pensar se o velho não lia meus pensamentos. E é claro que não bebi um único gole sequer daquela bebida. E se fosse veneno?
— Como estava dizendo, você tem que sair daqui, agora. Os homens de preto não estão de brincadeira. Eles estão cercando toda essa região para pegá-lo, matá-lo ou levá-lo até os seus superiores. Minha filha está observando o perímetro para podermos conversar em paz. Pegue esses papéis, siga pelas ruas marcadas em vermelho e aguarde no ponto azul. Está me entendendo? — disse rápido, gesticulando bastante com as mãos, de forma firme.
— Mas quem são esses homens de preto? Pelo amor de Deus, como eu vou confiar em você e ir pra uma cidade do outro lado do mundo, na esperança de que tenha alguém me esperando? Você é louco!
— Não precisa confiar, basta ver. Eu não gastaria meu dinheiro à toa para levar você até o Vaticano. Se quisesse te matar, mataria agora. Ah, e tome o chá, se quiser melhorar da dor de cabeça. Ele não tem veneno. — Levantou-se e caminhou até a porta.
Definitivamente, parecia que o homem lia meus pensamentos.
— Cuidado, senhor. Se demorar muito, é capaz que te alcancem... — Bateu a porta.
Não pude ficar ali deitado, esperando que alguém tivesse piedade de mim e que me levasse de volta ao Brasil. Retirei o lençol sobre as minhas pernas e assustei-me: além de não possuir calças, uma espécie de tatuagem estava localizada em minha coxa direita. Eu nunca tive dinheiro ou vontade de fazer uma tatuagem, como aquilo havia parado ali?
Como não tinha tempo, não reparei muito. Olhei para o redor, procurando uma calça, um lençol ou uma toalha, algo que possibilitasse esconder minha peça íntima.
Infelizmente, não achei.
Peguei o lençol que me cobria mesmo, amarrei-o na cintura, amassei os papéis na minha mão, pus-me em pé e sai, correndo, pela porta.
Cruzei com o velho indiano e sua filha, que parecia ter por volta de uns doze anos, sentados na mesa de jantar de uma cozinha pequenina e desarrumada. Eles sorriram para mim e desejaram-me boa sorte. Sim, confiaria nele, embora não soubesse se a melhor escolha era essa.
Indicaram-me a saída e me deparei com uma rua estreita, também movimentada, mas, dessa vez, curta. Respirei fundo algumas vezes e corri, como se nada mais importasse na minha vida. Dobrei a primeira esquina que o mapa indicava e me vi num beco. Assustei-me. Sempre usei GPS, não sabia ler mapas e tampouco tinha certeza de que o velho me falara era verdade.
Encarei o mapa por alguns instantes, virando-o de cima para baixo, debaixo para cima, da esquerda para direita e nada mudava. Quando escutei vozes adentrando o beco, escondi-me atrás de uma bicicleta parada ao meu lado esquerdo. Sabia que poderia não ser os homens de preto, mas era melhor prevenir que remediar.
— Minha Nossa Senhora Aparecida, interceda por mim. — Coloquei minhas mãos juntas, rezando.
Assim que fechei os olhos, o aperto no peito, de um pouco antes, surgiu. Imagens de um táxi e eu desesperado brotaram na minha cabeça. Acho que consegui melhor controlar esse poder ou qualquer coisa que aquilo fosse, porque saí do transe no momento que quis.
Deu tempo de observar quem passava pelo beco e, por sorte, notar que não eram os homens que me perseguiam.
Segundo o mapa, faltavam apenas algumas ruelas para que eu chegasse ao ponto azul. Pensava que nada poderia dar errado, até que deu...
Distraído, não vi quem andava à minha frente e, quando trombei nas costas de um homem alto, ele se virou. Era o brutamontes, atento ao que acontecia à sua volta. Logo, não perdeu tempo para sair em disparada atrás de mim, cercando-me e fazendo-me tropeçar nos meus próprios pés, de tão aterrorizado.
Tive de criar uma rota alternativa à do mapa. Virei no primeiro beco que encontrei, dando uma volta gigantesca por detrás da quadra de casas amontoadas.
— Hijo de puta, te mataré! — o ouvi gritar.
Temendo minha morte, tentei o despistar passando por algumas vendas de rua. Derrubei um carrinho de um velho que vendia frutas frescas, que pareceu soltar alguns palavrões na língua local, para atrasar o loiro.
Adentrei na rua que o ponto azul indicava. E, graças a Deus, o amigo do velho estava lá, do lado de fora de um táxi.
Assim que me viu desesperado, ele logo me chamou e adentrou no carro, dando partida e cantando pneu.
Não demorou muito para que o homem de preto nos alcançasse. Ele pulou na frente do carro e eu ouvi um estrondo horrível e um grito de dor. Mas, para minha sorte e para o azar do atropelado, o taxista não retrocedeu um único centímetro. Pisou fundo e saiu da cidade, acompanhando-me naquela aventura maluca.
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Os Escolhidos de Raziel
Fiksi PenggemarQuando a chama da fé nos anjos pareceu curvar-se perante a escuridão, Ele soube que precisaria ir atrás dos escolhidos. Thiego, Beatriz, Alice e Lorenzo estavam em quatro cantos do mundo, espalhados para que suas chances de serem descobertos fossem...