1.6. o segredo é continuar respirando

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Contrariando todas as baixas expectativas de Helena, o natal não havia sido tão melancólico quanto imaginava. Se não fosse pelo erro que cometeu ao ligar para a mãe para saber como estavam ela e o irmão mais novo, poderia dizer com muita tranquilidade que tudo aconteceu da melhor maneira possível, mas agora sabia que havia um horário certo que ela podia ligar para não chatear Júlio César.

— Eu só liguei para saber como estão as coisas — foi o que ela disse quando Isabel terminou de resmungar, repetindo o mesmo sermão de sempre sobre aborrecer o marido com ligações fora de hora. — Prefere que eu ligue amanhã então?

— Amanhã? — repetiu do outro lado da linha, e Helena já sabia o que viria, mas não deixou de sentir o baque. — Não, amanhã é natal. Tenho muita coisa para fazer, Helena, e o Júlio César, você sabe, não gosta de ser incomodado no natal. Ele fica muito chateado quando atrapalham o momento com a família, você sabe.

— Eu sou sua filha, você sabe — ela retrucou sem se exaltar, soando quase complacente. — Ou já esqueceu?

— Você diz isso como se eu fosse uma péssima mãe — ela começou, agitada, e Helena já conhecia aquela narrativa de fazê-la se sentir culpada por exigir o mínimo. — O Júlio Cézar sempre me alertou sobre você ser mal acostumada e eu nunca dei ouvidos, mas talvez ele esteja certo. Você já está muito crescida para agir assim, Helena. Você sabe o quanto suas insinuações me chateiam? Você quer que eu adoeça e fique presa numa cama, é isso?

— Claro que não, mãe — Helena negou, passando a mão livre pelo rosto para enxugar as lágrimas que manchavam seu rosto. — Não desejo nada além do que você merece, se é coisa boa ou coisa ruim, isso a gente vai descobrir com o tempo, não é? Feliz natal para você e sua família.

Antes de desligar, ouviu as reclamações de Júlio César no fundo e um chorinho de criança mais abafado. A partir daquele dia, precisaria se acostumar com a ideia de que não veria seu irmão crescer, e que a única família que tinha estava esperando por ela na sala, assistindo à novela das nove em meio a conversas animadas enquanto esperavam o prato principal da ceia assar.

Ainda assim, ela não podia reclamar, pois podia contar com os momentos mais alegres que se sucederam depois do fiasco no telefone com a mãe. Não podia se deixar esmorecer pelo desdém de Isabel quando o afeto e a gratidão de Jessé estava presente em cada gesto dele com ela. Dona Joana estava especialmente animada, divertindo-se com as músicas do Roberto Carlos que tocava no rádio da cozinha, mas nem todo o amor do mundo dos dois poderia evitar o choro de desamparo a que se permitiu.

Quando pegou o celular de novo, viu as várias mensagens de Georgia e sentiu uma profunda tristeza com a ausência dela, imaginando como sofreria quando ela viajasse para Luxemburgo no dia vinte e seis. Helena tentava a todo custo não se apegar à amizade com Georgia, mas os dias passavam e a conexão que sentia ficava cada vez mais forte.

— Jessé, a campainha — Dona Joana gritou da sala, tomando seu café pós-ceia enquanto assistia à programação especial de natal. — Vai ver quem é.

Da cozinha, Helena gritou que iria ver quem era. Enxugou as mãos no pano de prato e pegou Flora no colo quando ela ficou no caminho, miando por atenção.

— Deve ser a Zefinha, aquela velha mexeriqueira — ouviu a avó resmungar assim que Helena passou pela sala para chegar ao quintal, mas de onde estava não conseguia ver ninguém.

Já passava da meia-noite e os meninos ainda estavam na rua, alguns soltavam bombinha enquanto outros brincavam com um vira-lata de rua. Foi só quando se aproximou do portão que viu um carro cinza parado em frente à casa, um carro que provavelmente custava mais do que a sua casa e não condizia com o bairro que estava.

Questão de TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora