Primeira voz

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- Tai, posso falar com você?

Quando Anderson chamou a irmã, uma nota de tensão pairou no ar.

Tainá estava terminando de colocar a mesa. O café noturno era simples: café quente, três pães - que estavam ficando cada vez mais caros, então por vezes a jovem deixava dois reais no mercadinho da esquina para comprar apenas aquela quantidade; manteiga e açúcar.

Ovo, iogurte, queijo, estavam caros.

- Pode falar, Deco. Aconteceu alguma coisa na escola?

O tom de voz de sua irmã era cansado. Anderson não queria falar aquilo que estava engasgado na garganta, e deixar Tainá ainda mais preocupada. Sua irmã sempre se sentia confortável e aliviada em saber que o menino tirava boas notas e se dava bem na escola. Dizer que ele agora poderia perder sua bolsa seria algo muito cruel para Tainá – a irmã desejava o melhor estudo para Anderson, sempre dizendo ao caçula que não queria que ele fosse como ela: uma moça pobre, que só tinha o segundo grau completo e trabalhava em empregos muito ruins para o sustento da casa.

Os dois sabiam exatamente o motivo por trás daquela vida muito sacrificada. Se vivessem em outras famílias, se possuíssem uma estrutura familiar diferente, seriam outras pessoas.

-É-é... Então... - quando ele começou a falar, o som do celular do garoto tocou. Era um modelo simples, que Tainá conseguiu de terceira mão, já que sua colega no call center adquirira de outra pessoa antes de vender à jovem.

O garoto pediu licença por um instante e viu o conteúdo da mensagem. Sua expressão tensa se converteu em pura alegria.

"Tudo bem, Anderson, vou te dar uma chance. Amanhã na escola a gente conversa."

A mensagem meio atravessada era de Lenita. Agora ele sabia que tinha uma chance de se recuperar nas notas.

- Pronto Deco, o que é que tá acontecendo? Você recebeu alguma notícia muito boa, porque sua cara está outra!

-Notícia boa pra caramba, melhor notícia do mundo! Bora tomar café e depois eu te conto!

Após conversarem sobre a escola, a respeito do das aulas de música e da possibilidade de ganhar pontos extras, o que deixou Tainá bastante curiosa, terminaram o café e se dividiram nas funções: a irmã mais velha retirou os produtos da mesa; coube a Anderson lavar os pratos.

Assim que ela terminou a sua parte, avisou ao irmão, bocejando, que dormiria mais cedo.

- Oxe, Tai, tá cedo! Por que você não vai no barzinho aqui perto? Encontrar umas amigas, vê se tem uns caras aí pra você namorar...

- Tô sem dinheiro pra barzinho, Deco, e sem a menor paciência pra homem. O último só deu trabalho e nenhuma satisfação! Ainda queria se aboletar aqui em casa! Homem é problema!

- Peraê, Tai, e eu sou o quê?

- Você é meu irmão! Um homem bem-criado e que não vai fazer nenhuma besteira com mulher! Se não eu corto essas duas orelhas suas!

A jovem correu atrás de Anderson, que deixou as mãos coladas nas orelhas, enquanto brincavam de pega-pega no apartamento diminuto. Alguns minutos depois, enquanto Anderson lia uma revista no quarto, Tainá estava sentada em frente à televisão, acompanhando o jornal sem muita animação. As palavras de Anderson ficaram em sua mente: ela devia se divertir, ir ao barzinho com as amigas, encontrar alguém.

Na verdade, o corpo e a mente de Tainá se estafaram. Ela não tinha vontade de fazer as coisas que outras mulheres na idade dela realizavam. Estava chegando aos 30 anos de idade, e não tinha nenhum namoro fixo, nenhuma vida social a não ser ir ao trabalho, voltar para casa, e cuidar para que Anderson tivesse uma vida mais segura. Há muito tempo, Tainá não tinha uma semelhança de vida normal. Em sua mente, ela parecia sempre olhar para trás, com medo do que poderia acontecer; e de alguma forma o sentimento era aquele mesmo. 

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