A Caçadora

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Acordo sobressaltada após ter o mesmo pesadelo: estou correndo sozinha em uma floresta, gritando, implorando para que alguém apareça e me salve. De quê? Nem eu sei. Porque quando olho para trás, não vejo nada nem ninguém me perseguindo. Provavelmente estou fugindo dos meus próprios demônios. E o que mais assusta no sonho é o fato de ninguém responder aos meus chamados. O fato de que apesar de correr quilômetros floresta adentro, eu não encontro ninguém. É a sensação de solidão profunda que me atinge quando acordo assim, do nada, em minha cama onde ninguém dorme ao meu lado.

Eu tenho esses pesadelos desde criança, mas nunca contei a ninguém, exceto Kaya.

Hoje vejo como fui estúpida por ter confiado nela, e é por isso que tenho tanto medo de repetir o mesmo erro com Harley.

Por mais que eu sinta algo dentro de mim gritando: "é ela", "vá em frente", ao mesmo tempo algo me detém. Meu instinto de sobrevivência. O medo que adquiri pelas experiências anteriores, todas muito frustrantes, sobretudo àquela vivida com minha amada e odiada Kaya.

Gosto de recordar poucas coisas em relação às cobaias, justamente porque para mim é doloroso recordar que elas me enganaram e me obrigaram a fazer o oposto daquilo que eu gostaria. Porque meu objetivo ao trazê-las para cá nunca foi, de fato, a violência. Menos ainda aniquilá-las. O que eu queria era tê-las comigo para sempre, mas a princípio em vida. Eu queria dividir minha vida com elas. Mas que culpa eu tenho se todas elas me rejeitaram?

A rejeição é um sentimento que eu conheço desde a infância. Meus avós nunca gostaram de mim, nem os meus pais, apesar de termos adquirido certa proximidade por conta dos gostos em comum. Talvez tenha sido por isso que eu me apaixonei por caça e taxidermia. Uma forma inconsciente de criar um vínculo com meus pais, duas pessoas que deveriam me amar profundamente, mas que pareciam incapazes de me enxergar claramente.

Ou talvez me enxergassem bem demais e por isso mesmo não conseguissem me amar.

Essa dúvida ficará comigo pelos restos dos meus dias.

Confesso que todas as vezes que tenho esse pesadelo, acordo perturbada. Minha cabeça fica dolorida, pesada, como se eu carregasse o peso do mundo dentro dela.

Hoje é terça-feira. Harley e eu não nos vimos ontem. Quer dizer, eu a vi. Ela não me viu. Porque depois de beber como uma desesperada madrugada a fora, minha loirinha apagou em seu quarto. Eu aproveitei para deixar muita coisa para ela comer pela manhã e assim não ter de retornar, porque depois do nosso primeiro beijo eu precisava de espaço para pensar, assim como ela.

Foi bem chocante. Eu não imaginava que Harley pudesse ser tão ousada, ainda mais tão cedo. Achei que a evolução física entre nós tardaria, mesmo com os nossos embates. Mais uma vez ela me surpreendeu. Positivamente, eu acho.

Minha reação num primeiro momento foi um tanto quanto ruim, porque estranhei seu gesto. Sou desconfiada por natureza e minhas experiências anteriores intensificaram esse meu pé atrás em relação a intenção alheia, porém eu acredito genuinamente que Harley quis me beijar. Isso ficou muito óbvio em todos os seus gestos, na forma como me olhava e no ato em si. Até porque o álcool só traz à tona aquilo que está dentro de nós e que muitas vezes resistimos em demonstrar por receios que as regras sociais nos trazem. E o meu objetivo com esse experimento é justamente fazer com que Harley se livre de qualquer empecilho que o mundo lá fora colocou e faça exatamente aquilo que deseja.

O chocante foi o fato dela desejar me beijar tão rápido.

No fundo, Harley me lembra Kaya em muitas coisas. Elas são parecidas. Ambas corajosas, com olhos azuis potentes, um jeito desafiador, uma atitude de menina rebelde que não tem medo das consequências, ou finge bem não ter. Inteligentes, bonitas e irresistíveis.

A Caçadora [harlivy]Onde histórias criam vida. Descubra agora