19 - begin again

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O sol forte que entrava pelo vão entre as cortinas interrompeu o meu sono e, sem conseguir abrir os olhos direito, custei a identificar aonde eu me encontrava. Precisei de algum tempo para me recordar que estava no meu quarto, mas no que ficava na casa da minha mãe, em Amsterdã, e aquela percepção foi acompanhada pela lembrança de que ela estava no hospital, me atingindo com um sobressalto. Ainda com os olhos semicerrados, eu tateei a cama e a mesa de cabeceira até alcançar meu celular, dando um suspiro aliviado ao encontrar uma mensagem de Tom em destaque na tela, onde ele dizia que minha mãe estava bem e que a alta sairia em breve, às onze horas.

Onze horas? Em breve? Com mais um susto, percebi que o relógio do meu telefone indicava que acabara de passar das dez da manhã, e eu me espantei ao me dar conta de que tinha dormido tanto tempo. Os meus pensamentos se organizavam lentamente, e só então eu me lembrei que Charles fora quem tinha me levado até lá, logo depois da corrida, e novamente fiquei confusa com a sequência de fatos, uma vez que a minha última memória era de ter adormecido em seus braços, no sofá da sala. Como eu tinha ido parar na minha cama?

As perguntas na minha cabeça eram muitas, e decidi me arrastar para fora da cama na tentativa de buscar algumas respostas. Os meus passos descalços mal faziam barulho sobre o piso de madeira enquanto eu descia as escadas até o andar de baixo e, logo que virei à esquerda para cruzar o arco que dava na sala de estar, me deparei com um Charles profundamente adormecido, todo encolhido no sofá. Ainda vestido nas roupas do dia anterior, assim como eu, ele parecia não se incomodar nem um pouco com a claridade que entrava pela janela da frente, e seus ombros subiam e desciam em um ritmo tranquilo, fazendo com que eu desse meia volta e o deixasse dormir, pensando que ele deveria estar ainda mais exausto do que eu, já que tinha pilotado por quase duas horas entre as retas e curvas do circuito de Zandvoort antes de encarar aquela viagem às pressas junto comigo até Amsterdã.

O silêncio da casa me convidava a explorar os cômodos do andar de baixo, caminhando lentamente por cada um deles com um sorriso fraco no rosto. Eu adorava encontrar as marcas da personalidade da minha mãe em cada cantinho, seja no vaso de cristal com um belo arranjo de flores sobre a mesa de jantar, ou então no jogo de xícaras em tons pastéis com bolinhas brancas cuidadosamente dispostas nas prateleiras da cristaleira na cozinha e, por mais que eu não tivesse crescido naquela casa, esses pequenos detalhes traziam uma familiaridade que aqueciam e confortavam o meu peito.

A descida lenta pelas escadas que levavam ao porão, que nada mais era do que um quarto extra onde todo tipo de coisa ficava guardada, era com a intenção de procurar por um livro de Arquitetura Histórica que eu usara na época da graduação, e que eu sabia que poderia me ser útil para a pesquisa do mestrado. Mas, antes mesmo que eu pudesse encontrar as caixas com o meu nome, um armário chamou a minha atenção e, sabendo o que ele armazenava, não pude conter o ímpeto de vasculhá-lo. Por entre caixas de fotos antigas e objetos pessoais, aquele armário continha milhares de lembranças do meu pai, e eu adorava passear por elas de tempos em tempos. Mesmo que a saudade ainda doesse, aquelas memórias conseguiam colocar um sorriso no meu rosto ao encontrar fotos da minha infância, antes e depois do nascimento de Miguel, quando ainda morávamos em Sintra e costumávamos frequentar as praias de Cascais e passear pelos castelos da cidade. Em uma das caixas, me deparei com algumas reminiscências da época em que ele assistia Fórmula 1, inclusive recordações de seu grande ídolo, Ayrton Senna, e dei uma risada fraca ao pensar como meu pai marcava presença na minha vida, ainda com mais força nos meses mais recentes.

O meu estômago roncando de fome foi a única coisa capaz de me puxar para fora dos devaneios que aquelas lembranças me causavam, voltando para o meu objetivo inicial ao descer até o porão. Eu rapidamente consegui encontrar o livro que procurava, já que os meus pertences guardados ali sempre estavam em ordem e no mesmo lugar, e eu logo subi de volta os degraus que levavam ao andar de cima, mas não sem antes lançar um último sorriso para o "armário do pai", como Miguel e eu costumávamos chamar. Ao caminhar novamente até a sala de estar, encontrei Charles já acordado e sentado no sofá, mexendo distraidamente no celular. Ele ergueu o olhar na minha direção assim que eu me aproximei, abrindo um sorriso que, juntamente dos olhos ainda inchados de sono, o deixaram com uma expressão adorável, e a sua presença foi capaz de me confortar apenas por estar ali.

ℛ𝑎𝑐𝑖𝑛𝑔 ℋ𝑒𝑎𝑟𝑡𝑠 [ᴄʜᴀʀʟᴇs ʟᴇᴄʟᴇʀᴄ]Onde histórias criam vida. Descubra agora