Capítulo 2

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Eu prometo que nunca mais vou me atrasar. Nunca mais! Saí correndo de tal forma que nem me lembro de colocar  tudo o que preciso para a aula, mesmo sendo só o básico. Verificando tudo, sinto quando meu celular vibrar, mas está no fundo da minha mochila que sempre parece ter um buraco para Nárnia quando eu mais preciso das coisas. Enfio minha mão o mais fundo possível na mochila tentando achar o aparelho que segue vibrando, mas fico tão distraída com minha missão que não enxergo nada na minha frente e só percebo o nível da minha desatenção quando dou de frente com um peitoral forte e mãos que seguram nos meus ombros me impedindo de continuar . Levanto a cabeça já com mil desculpas na ponta da língua, mas as desculpas ficam travadas na minha garganta quando me deparo com olhos de um verde intenso que me fitam com um brilho debochado. As desculpas agora viram um xingamento que só não é verbalizado porque a distraída da história ainda sou eu. Ergo o queixo em descaso 
– Descu…– antes de terminar de falar, o brilho que antes era de deboche vira indiferença. 
O indivíduo em questão solta meus ombros e segue seu caminho como se nada tivesse acontecido sem proferir uma palavra se quer. Babaca. Sigo para minha aula correndo e ignoro o celular que volta a tocar.     

Minha única interação com Ethan vem em cheio na minha mente quando agora ele se encontra junto de Adam na mesa em que costumo estudar. O universo me odeia! É a única explicação e agora parece estar rindo da minha cara me fazendo lidar justamente com o que eu mais tenho evitado. Grandes olhos verdes me encaram me dando vontade de virar e voltar para casa. Luisa vai surtar!

– Vocês chegaram cedo. – Digo colocando minhas coisas em cima da mesa tentando me concentrar em cada passo que dou. Minhas pernas tremem mas me recuso a cair ou tropeçar em público porque seria o fim.
– Eu disse que você provavelmente iria atrasar.– Adam diz se aproximando e me dando um abraço. Mesmo sem querer, ele me  arranca um sorriso com seu gesto. Tá que eu não esperava, mas o ato parece tão natural dele que não me assusto. Já Ethan segue calado e me olhando de uma forma que não consigo identificar. Suas sobrancelhas estão tensas e sua respiração parece irregular.

– Ethan estava ansioso pra te conh…– 
– Para a aula– Ele se apressa para responder dando um olhar furioso para Adam qeu parece alheio ao ódio que lhe é direcionado. – Tudo bem? – Ele pergunta mas antes que eu tenha a chance de responder, Adam resmunga
– Sei…Trocar de camisa cinco ve…– A fala de Adam é interrompida novamente com uma cotovelada na costela que Ethan lhe dá. – Enfim…tudo bem? Estranho você não atrasar– ele responde passando a mão por cima da costela atingida mas com humor na voz ao proferir a piadinha pra cima de mim. A interação entre eles me confunde ainda mais. Detesto ficar entre uma interação quando claramente tem algum assunto interno que só eles dois sabem e não parecem que vão compartilhar, mas não vou me estressar com isso. Levanto o olhar ignorando a fala de Adam, mas achando graça de seu abuso.
– Então tá. – Ignoro a alfinetada e sigo em frente – Vamos começar? Adam disse que você está com muita dificuldade em literatura e que precisava muito de ajuda. – Começo preparando o material para tentar ajudar o novo aluno, mas é quando me sento que realmente observo o atleta. 
– Estamos estudando Sheakespeare agora e o professor quer que falemos sobre algumas obras. A minha nota não foi o que eu esperava e quero me sair melhor na segunda…– Ele começa a falar de forma lenta, como se cada palavra tivesse sido decorada para esse momento. Ainda me olhando com um estranho interesse, Ethan segue falando enquanto analisa com atenção o meu rosto. Seus olhos escaneiam cada detalhe, se arrastando pelo meu cabelo, meus olhos e por fim a minha boca.  

Mesmo sem conhecer, de longe daria para reconhecê-lo. Não pela cor impressionante dos seus olhos ou o tom terroso de sua pele que mostra uma origem indiana, mas por ele inteiro. Até hoje eu só tinha visto fotos e ouvido falar da fama do melhor jogador da faculdade que, ainda calouro, chamou tanta atenção que virou a principal propaganda do programa de atletismo da faculdade. Fora isso e um rostinho agradável de se olhar, até hoje ele não era nada além disso. Mas agora, olhando de perto… É difícil explicar algo que não tem nome. É claro que ele é lindo com o sorriso bonito, a boca rosada e carnuda, cabelo escuro formando ondas largas que caem sobre sua testa e  uma barba por fazer dando um ar de maturidade que provavelmente não tem. Além de um rosto que chega perto da perfeição, a altura de Ethan beira 1.90, ombros largos e braços fortes o tornam ainda mais tentador. Mas é algo a mais! A forma de falar, o sorriso contido que mas que ainda se faz presente, um olhar irônico constante e a postura de quem sabe o efeito que tem. Tal efeito que, apesar do meu incômodo com os atletas, me afeta também. Minhas pernas que antes tremiam por estar na presença de pessoas que eu não tenho intimidade, agora tremem por ter alguém como ele me direcionando um olhar de interesse que no fundo eu não acho que alguém como ele direcionaria para alguém como eu. No fundo, por mais triste que seja, parece piada que Ethan Miller esteja me olhando com uma atenção que parece ir além das aulas. Tento respirar fundo e me concentrar nas palavras que saem da sua boca e não nos lábios em si que parecem perfeitamente beijáveis.     
Ethan precisa de ajuda com as questões sentimentais por trás de alguma peça que ele mesmo iria escolher e dissertar sobre. 
– Posso ver suas anotações? – Peço ainda tremendo para tentar acalmar a  vergonha que me dá ao ser encarada assim. Analisando o material de Ethan, vejo que ele é extremamente organizado e estranho as anotações variadas que parecem resumir exatamente aquilo que ele diz que tem dúvida. 
Tem algo estranho, mas ignoro a sensação porque independente de qualquer coisa, eu ainda estou sendo paga pela aula. Mesmo com muitas suspeitas, tento seguir as mesmas orientações que dei a Adam na primeira aula, que agora, já sabendo como funciona, se encontra do nosso lado já iniciando os próprios resumos. Instruo Ethan com base naquilo que seu professor passou para a atividade e apenas tento aprofundar o que ele diz não entender sobre algumas obras e os sentimentos por trás das palavras.
Tento explicar o romance por trás das tragédias e como o drama e a sensibilidade de suas palavras conversam com o partes complexas da alma e por isso são tão relevantes ainda hoje.
 — Entenda que não é um simples e puro drama, Ethan. – Tento ser paciente, mas é difícil quando alguém parece tratar temas que eu amo com desprezo – A complexidade dos personagens não justifica suas atitudes, mesmo as mais assustadoras, mas os aproximam da realidade. Por isso sua obra é …– sigo tagarelando sobre William Shakespeare, não apenas querendo dar conteúdo o suficiente para que o atleta enrole o suficiente em um resumo que lhe dê uma nota boa, mas também porque a complexidade das obras trágicas me fascinam e fazem com que eu entre em um uma bolha própria que me impede de perceber qualquer coisa ao meu redor. Poderia falar sobre isso por horas e mais horas, mas é enquanto eu falo que sinto um estranho solavanco por baixo da mesa que interrompe minha fala. Quando vejo do que se trata Adam estava olhando com um sorriso debochado para Ethan que lhe direciona o mesmo olhar raivoso de mais cedo. Ele chutou o amigo por baixo da mesa. Enquanto prendo o riso pelo ato infantil, vejo que o horário da aula acabou.
– Acho que por hoje já está bom. – Ethan que até então ainda estava olhando seu amigo com fúria, ameniza seu olhar ao voltá-lo para mim novamente
– Não eram duas horas de aula?
– Já foram duas horas de aula – digo sorrindo. Também não vi a hora passar. O tempo corre quando falo daquilo que me agrada. – Mas acho que já é o suficiente para seu trabalho. –
Começo a reunir meu material. Apesar da aula ter fluido bem, minha vontade de me afastar ainda é maior.  O atleta agora tenciona novamente sua sobrancelha e pisca algumas vezes entendendo o que eu digo e parece desaprovar.
– Acho que vou precisar de mais algumas aulas. Tenho muitas dúvidas ainda. – 
– Mas você não precisava de ajuda apenas com esse trabalho? – pergunto agora realmente curiosa porque até agora o desespero que Adam dizia que Ethan tinha parece ser bem inútil, visto que ele não demonstrou real dificuldade com a matéria e suas anotações eram bem completas. O loiro segue sentado e agora com as mãos atrás da cabeça em apoio e, observando nossa estranha interação, prende um sorriso que não sei identificar se é de deboche ou de alguma outra coisa.   
– Sim, mas posso precisar de outras. Ou simplesmente querer outras.  – A última parte é dita em um tom mais baixo que me arrepia dos pés à cabeça. Engulo seco com o olhar descarado que me direciona mas, tentando agir o mais normal possível , levanto o queixo em concordância
– Bom… o dinheiro é seu. Gaste como quiser, mas agora vai ter que esperar a lista de espera porque não vou abrir outra exceção – A verdade é que a lista de espera não é tão extensa e nem tem tanta importância quanto eu dou a entender, mas os atletas não têm que saber disso. Minha fala, que deveria fazer Ethan recuar e desistir de vez, parece que o incita a se aproximar. Enquanto abre um sorriso lento e levanta os olhos em surpresa a minha recusa ele chega perto de mim. Perto demais. Quanto mais perto chega, mais alto parece. Vendo meu acuamento diante sua aproximação invasiva, seu sorriso se alarga e ao invés de se aproximar mais de mim como eu acho que vai fazer, ele se agacha e pega minha garrafa d’água que já ia sendo deixada para trás.
– Não esquece a sua garrafa e lembra que eu estou disposto a pagar a mais para furar essa fila de espera. – Ele sorri novamente para mim e vai embora com Adam me deixando para trás e com um ponto de interrogação na cabeça. A primeira aula com Adam me despertou diversos questionamentos e essa aula que deveria me esclarecer as coisa me fez questionar ainda mais.

Mesmo sabendo que vou encontrar Luisa em casa, não me aguento e mando mensagem dizendo que tenho que contar como foi. Mesmo não tendo a intenção de contar os detalhes a distância, confesso que incitar a curiosidade da minha amiga me diverte. Luisa parece querer me matar dizendo que não se faz isso com uma pessoa que tem ansiedade e que sou má por não contar logo como foi.
      
“Apenas diga o que aconteceu”, sua mensagem diz. É engraçado que consigo ver que quase roe as unhas de ansiedade "Diz só do que se trata ”

Resolvo responder de forma rápida e que desperte sua curiosidade, 
“Digo apenas um nome : Ethan Miller” digito, silencio o aparelho e o guardo. A fúria dela agora deve estar no auge já que sabe que estou indo para casa e que na próxima meia hora não vou responder mais porque estarei na rua.  

Vou caminhando para casa e no meio do caminho penso na aula que dei para os atletas. Eles não são ruins como pensei que seriam e minha ansiedade não me atacou como pensei. Na verdade, absolutamente nada aconteceu como eu pensei. Posso ter exagerado na forma em que pensei que as coisas iriam acontecer mas não me importo com tal exagero. Prefiro manter minha paranóia a criar expectativa
– Íris! – Ouço o grito com meu nome e quando me viro dou de cara com Archie que atravessa a rua e vem na minha direção.
  Archie é um colega de classe que conheci no primeiro ano no campus e desde então segue como se nosso convívio fosse uma profunda amizade quando na minha mente ele é apenas um colega. Tem a altura mediana e cabelos castanhos e poderia até achá-lo atraente se não fosse tão irritante. Ele é o tipo de pessoa que pode até ter um bom coração, mas no dia a dia sua personalidade é levemente intragável com suas constantes interrupções e o tempo todo querendo ser o centro das atenções mesmo quando o assunto não é sobre si. 

–Oi Archie– digo tentando forçar um sorriso. – Tudo bem? Estou indo para casa – Falo tentando escapar de suas investidas. Infelizmente todo contato que tenho com ele resulta em um monólogo do próprio sobre alguma coisa que ele julgue interessante e com ele voltando seu olhar para os meus seios.   
– Oi, estava no sarau de poesia. Recitei algumas das minhas que estou transformando em música e  aplaudiram de pé. Te levo em casa. Vai no outro sarau do fim de semana? Até lá minhas poesias já serão músicas e vou tocar. Espero que faça sucesso porque estou melhorando cada vez mais…– Ele fala tantas coisas e tão rápido que é difícil prestar atenção em tudo, principalmente quando coloco certo ritmo no meu andar para chegar mais rápido. 
– Que bom que gostaram das suas poesias. – Falo sorrindo amigavelmente. Apesar de ele me irritar, fico feliz por ele ao mesmo tempo em que evito de responder se vou ou não ao sarau porque, apesar de gostar de poesia, ainda prefiro ir na festa dançar.
               
      – Sim, sim também fico feliz. Mas você vai no fim de semana?
Respiro fundo antes de responder porque sei a opinião que tem sobre esses eventos. 
–Então…acho que não vai dar para ir porque vou a uma festa com a Luísa no fim de semana– O revirar de olhos dele me irrita e quando me olha novamente começa a falar as mesmas coisas. que sempre diz nas nossas interações quando eu menciono alguma festa
– Eu não acredito que alguém tão inteligente como você vai desperdiçar seu fim de semana com uma festa dessas cheias de gente bêbada, sem cultura que não sabem de nada e só se preocupam com sexo e drogas…– ele segue falando as mesmas coisas que sempre diz. Muitas coisas me irritam nele, mas o que mais me enlouquece é sua superioridade ao falar sobre qualquer festa, como se ele fosse um ser superior por ser sensível o bastante por escrever poesias e tocar violão. 
– As festas são ótimas Archie e quem quer usar drogas ou fazer sexo não precisam delas para fazerem isso. Fazem em qualquer lugar – respondo impaciente. Por que minha casa parece ainda mais longe hoje sendo que é só meia hora de caminhada?  
– De qualquer forma eu não acho que você deveria ir porque…
– Mas eu quero ir e vou. Isso não faz de mim menos inteligente–
–Ainda acho que não é lugar para você, mas não vou insistir. Mas ainda sim ficaria feliz se você fosse me ver. – Ele fala amenizando seu tom de voz e com um sorriso de quem quer convencer alguém de algo. Sua tentativa me faz rir por dentro. 
– Qualquer dia desses eu vou. – minto mesmo sabendo que é errado. Não tenho a menor intenção de vê-lo recitando suas obras “profundas” já que ele sempre me envia mesmo que eu não demonstre nenhum interesse .          
 - Você vai gostar, tenho certeza.  Estou mudando algumas coisas e …– a voz dele fica cada vez mais baixa na minha mente porque tento bloquear a sua voz e chegar em casa antes que eu exploda com tanta inconveniência.  
  

Reconhecendo o AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora