Verde

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A noite passou tão depressa que, quando dei por mim, a claridade da manhã adentrava pela cortina. Minhas mãos começaram a sentir o repetitivo movimento feito por horas, digitando. Mas não tive nenhum problema: entendi o tópico, entendi meu dever. O trabalho estava feito. Salvei o arquivo num pen drive em formato de hipopótamo, desses com formato engraçadinho que adultos compram para despertar um pouco da infância perdida.
Depois de me espreguiçar, preparei o café da manhã: três fatias de pão, yogurte com mirtilos e uma xícara de café preto. Por volta das 9, mandei mensagem para Olga, explicando que eu começara a analisar o documento mas que havia encontrado algumas discordâncias e, então, precisaria me encontrar com ela para esclarecer melhor o que deveria fazer.
Em poucos minutos, ela me respondeu e assim foi combinado de nos encontrarmos na sexta-feira, depois da penúltima aula, 18:30.

Os dias que passaram não valem a descrição. Vamos direto à sexta, de manhã.

Fiquei um tempo no banho. A água quente escorria por mim como uma labareda de fogo. Lambia meu cabelo, minhas costas, descia por entre as pernas e terminava nos pés, já vermelhos pelo castigo. Eu queria sair de mim. Queria ir até ela e, num movimento violento, arrastá-la para a banheira. Assim, queimaríamos juntas e esfriaríamos para novamente, arder.

Em seguida, enquanto o cheiro de café inundava o ambiente, preparei algumas notas para pedir o auxílio de Olga. Apenas com a toalha na cabeça, desfilei até o armário e fui, de peça em peça, procurando o que vestir.
Coloquei uma calça preta de algodão e uma camiseta de mesma cor, largamente desproporcional. Logo as botas estariam calçadas mas antes terminei o café, peguei todo o material da faculdade e algumas balas de menta para cortar o amargor da bebida.

O dia passou depressa. Eram quase 18:20 quando cheguei no sofá verde. Quando a última bala estava na boca, vi o vulto de Olga se aproximando.

- "Vem." , disse, fixando o olhar em mim enquanto ia em direção à sala.

Ela ficou na porta enquanto eu entrava. Bati o olho numa cadeira meio perdida no centro, sentei.
Olga fechou a porta e arrastou outra cadeira, ficando de frente para mim.

- "O que houve?"

- "Veja, aqui têm algumas anotações sobre o documento." , tirei o papel da mochila, meio amassado.

- "Ok. Quer algo para beber? Café, chá?", novamente me olhando.

- "Chá, por favor."

Olga esticou o braço e pegou uma caixinha, de tecido que um dia fora branco e que agora estava encardido, abriu a tampa de mesmo estado e me ofereceu, me fazendo escolher um entre tantos sachês.

Um em especial chamou minha atenção: era um plástico verde claro e, nele, estampado o nome "Flirt".

- "Esse." , puxei o pacotinho, exibindo o nome à Olga.

- "Flirt?", olhou-me e arqueou as sobrancelhas, abrindo um sorriso tímido em seguida.

- "Sim, parece bom." , retruquei enquanto colocava as anotações no bolso do jaleco.

Levantamos quase que em sincronia: ela em busca da chaleira; eu em busca da xícara.

Olga enfim leu aquilo que eu tinha anotado sobre o documento. Pegou uma folha da escrivaninha e rabiscou algumas frases que, depois vim entender, eram instruções. Obviamente não as segui, mas guardo aquela folha até hoje como um símbolo, ou prova, de que nem mesmo Olga era perfeita. A letra cursiva da minha amada eram como hieróglifos misturados com alfabeto cirílico que disfarçavam um inglês escocês com australiano. Ela nem fazia esforço para se fazer entender, e isso acendeu em mim a vontade de traduzi-la.

O chá estava quase terminando. Levantei e deixei a xícara perdida na mesa. Fui em direção à janela, lá fora quase escuro. Algumas plantas haviam sido trocadas, porém uma ainda permanecia lá, observando tudo. Toquei as folhas frias, lisas e largas, dum verde muito bonito e uniforme. Virei-me para Olga. Ela continuava na mesma posição: pernas cruzadas, costas curvadas apoiadas no encosto da cadeira; os braços cruzados fechavam Olga no próprio mundo, mas os olhos azuis abriam um caminho muito estreito em minha direção.
Não sei ao certo por quanto tempo nos encaramos, mas sei que ali senti algo diferente vindo dela.

- "Está ficando tarde, preciso ir.", Olga quebrara o silêncio, se levantando e ajeitando as cadeiras.

- "Obrigada pelo chá."

- "Obrigada pela ajuda."

Saímos da sala juntas mas Olga cruzou o corredor e entrou em outra sala, me deixando não outra opção senão a de sair dali sozinha. Não consegui falar tchau, também não olhei para trás. Enquanto ia me afastando, ouvi uma porta se fechar atrás de mim. "Talvez seja ela", pensei. Mas não gastei essa energia para descobrir, apenas saí.

Chegando em casa, enchi a banheira. Com o estômago doendo, pulei o jantar e fui direto para a cama. O pijama de flanela me abraçou naquela noite de forma especial.
Após arrumar a cama, apaguei todas as luzes, joguei meu corpo de bruços e sussurrei: f l i r t ...

Com açúcar, com afetoOnde histórias criam vida. Descubra agora