Chaminé

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Perto da salinha de Olga, uma criança brincava no chão. Tinha por volta de cinco anos, magra e agitada, parecia entretida com folhas de caderno. Quando se deu conta de quem se aproximava, levantou e correu em direção à Olga, a qual a abraçou apertadamente. Esse frame passou por mim como se eu nem estivesse ali. Após alguns segundos, entendi que a criança era Maria. Olga me apresentou, disse que eu era a tal aluna dos chocolates. A menina veio até mim e, meio sem jeito, abriu os braços. Eu me agachei e tentei ser o mais amigável possível, afinal, era um bem precioso que estava ali.
Seguimos as três até a sala e, outra surpresa: a filha mais nova, Anna, estava num carrinho, comendo alguma coisa que não pude reconhecer. Encarei a criança e em seguida Olga explicou que, naquele dia, não conseguiu deixá-las na escola.
Ofereceu-me chá e entregou à Maria biscoitos e uma garrafinha amarela.

Ao barulho da chaleira, Maria me apresentou as bonecas, os lápis e falava sobre a escola, os colegas, a vida de criança. Enquanto nossa amizade ia floreando, Olga ajeitava a bagunça, acompanhava a refeição de Anna e me fitava, sorrindo.

Em poucos minutos, voltamos para a aula. Como um combinado silencioso, ela foi na frente, apressada. Eu, por preguiça, me demorei.

Após a aula, fui direto para o sofá verde, aquele perto da salinha onde as crianças estavam. Não demorou muito para que Maria viesse até mim, trazendo Anna. Peguei-a no colo e continuei conversando com Maria, que agora desenhava se apoiando no sofá.

- "Maria, desenha sua casa, sua família..."

Ela esticou uma folha branca meio amassada e começou a rabiscar. Os traços de azul anil iam formando uma estrutura minimalista de uma casinha com chaminé. Fez-se flores na janela e macieiras ao redor. Trocou de lápis. De amarelo, o sol apareceu no centro superior da pintura. Trocou novamente. Agora, de preto, deu forma à família:

- "Pronto." Disse a pequena.
- "E quem são?"
- " Eu, Anna, mamãe e vovó."

Silêncio. Eu não sabia o que perguntar e como perguntar mas a figura paterna não estava ali. Queria ir ao ponto: "e teu pai?", "não tem cachorro ou gato?", "por que desenhou Anna com uma cabeça tão desproporcional?", mas eram perguntas fadadas ao fracasso. Eu provavelmente irritaria a menina, e, com certeza, a mãe.

- "Que legal!" - tentei...

Uma pressão no peito me fez lembrar que Anna ainda estava no meu colo, quase dormindo, apoiada em mim. Virei as pernas dela de maneira a deixá-la confortável, e recostei a cabeça no meu braço arcado em forma de berço. Ela não percebeu, deixou o sono seguir. Adormeceu.

Maria deixou os desenhos espalhados pelo sofá e correu em busca de novos brinquedos. Num movimento delicado, estiquei o braço que estava livre a deslizei o desenho da família para debaixo da minha coxa. O único objetivo foi guardar a primeira recordação de que talvez Olga não tivesse um relacionamento tão estável, ou a filha tivesse esquecido do pai.

Voltei os olhos à Anna. Era miúda, pele pálida e o cabelo castanho se dividia em mechas ralas. Vestia um casaqueto, meias grossas e sapatos. Tudo em tons de rosa. Respirava profunda e pausadamente. Anna me trouxe a calma que Maria me tirara minutos antes. Anna era mais do outro que de Olga. Maria parecia Olga por inteiro: no jeito, no andar. Enfim, eram crianças com alma pura, me senti em paz. Lembrei da minha infância, do cheiro do café de vovô, do bolo de fubá, das noites de jogos. Faltou pouco para meus olhos se encherem de emoção, mas Olga apareceu ao lado do sofá, com uma mão na cintura e outra no queixo, se mostrando surpresa:

- "Não acredito..."

- "Ela está dormindo." Falei, sussurrando.

- "Eu estou vendo, Stella." - riu baixinho e foi caminhando até a sala, deixando os olhos em mim e Anna. Mexeu a cabeça em negação como quem não acreditava no que vira.

Fiquei ali, guardando o sono de Anna por mais de uma hora. Perdi uma aula, perdi o almoço, mas ganhei um sorriso de Olga. Maria, vez ou outra aparecia, imitava uma borboleta, balbuciava uma língua estranha, e saía, ia pelos corredores a fora desvendar os mistérios do prédio. Nesse tempo, Olga teve mais uma aula com outra turma e, quando voltou, sentou no sofá.

- "Você não está cansada? Ela está pesada...", disse olhando para os meu braços.
- "Não, está tudo bem.", mas não estava nada bem. Meus braços não doíam porque eu não sentia braço algum. A fome me consumiu de dentro para fora. O estômago vazio e a bexiga cheia me deixavam num desespero interno que estava prestes a se exteriorizar.

Talvez sentindo meu desespero, Anna foi despertando. Bocejou, levou as mãos ao rosto, coçou os olhos, e bocejou novamente. Abriu os olhos, me fitou e logo viu a mãe sorrindo. Levantou meio cambaleando e saltou no colo materno. Nesse movimento, eu já havia agradecido a diversos deuses pelo alívio; claro que foi uma alegria passar tempo com a criança mas o limite era fisiólogo.

-"Obrigada", disse Olga. E sorriu, me encarou, me analisou.

Não respondi nada além de outro sorriso. Esperei Olga levantar com Anna e entrarem na salinha, dobrei o desenho de Maria, guardei no bolso e fui depressa ao banheiro. Do banheiro, à cantina. Da cantina, ao armário. Peguei minhas coisas, me troquei e fui para casa. Enquanto comia o salgado que comprara, recebi uma mensagem de Olga. Era outro "obrigada" seguido por "você tem vocação para ser mãe". Quase engasguei com a mensagem.

"Adorei ter conhecido suas filhas", enviei.

"Elas te adoraram."

Não consegui enviar mais nada. Peguei o desenho de Maria e tentei analisar cada traço. "Por que ela não desenhou o pai?". Talvez eu estivesse pensando demais; talvez eu devesse ser mais direta com Olga, perguntar à ela.

Olhei pela janelas algumas árvores que dançavam com o vento e suspirei: coragem, Stella, coragem...

Com açúcar, com afetoOnde histórias criam vida. Descubra agora