Bandeja vazia

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O início do ano foi turbulento. Muitas provas, aulas extras e o inverno chegou no ápice.
Fiquei duas semanas sem ver Olga, duas semanas sem aqueles olhos, aquela risada... e a pergunta que me atormentava: quem era Maria?
Pois achei que fosse alguma referência religiosa, talvez algum clichê natalino cristão, e aquilo me assombrava: e se ela fosse mesmo religiosa, quais as chances dela ir contra toda a pregação e moral que defendia? Como poderia, uma mulher que usa a mãe de Cristo como referência, trair o marido e sair com uma aluna?
Isso seria demais.

Depois de duas semanas indo aos testes e estudando igual uma miserável, olhei no cronograma de aulas e procurei pelo nome que me deixava sem chão.
Ela daria aula no mesmo dia que eu estaria em prova de outra matéria, então a chance de vê-la seria razoavelmente boa.
Era uma terça-feira, os dias eram curtos então às 8 da manhã ainda se sentia a escuridão da madrugada.
Corri para pegar o ônibus pois naquele dia estava indisposta a ser beijada pelo gelo canadense.

Ao chegar na faculdade, troquei de roupa, coloquei o jaleco e  peguei algumas páginas impressas com conteúdo do teste que mais tarde iria fazer.
Como de costume, subi as escadas num frenesi juvenil de uma jovem apaixonada que ansiava por ver a amada. Cheguei ao quarto andar e, num movimento planejado dias antes, fui desfilando como uma garça que anda pelas águas de um rio calmo. A cada passo, tentava aguçar os sentidos na intenção de captar qualquer sinal de Olga. E enfim cheguei ao destino: o sofá verde.

Ajeitei minha bolsa e meus papéis. E enfim, depois de poucos eternos minutos, Olga apareceu, saindo da salinha dos professores.
Eu tentei disfarçar, fingindo mexer no celular, mas durou pouco. Logo olhei para ela e ela me deu um sorriso preguiçoso.

- "Hey, o que faz aqui já cedo?"- ela veio em minha direção.
- "Tenho uma prova... e aí, como você está?"
- "Essa época é horrível, muita prova e estresse."

Olga vestia calça jeans, sapatos sociais pretos e uma blusa meio soltinha azul marinho. Ainda não estava com o jaleco, então pude ver a silhueta, coxas e braços se aproximando do sofá.
Ela não sentou. Ficou em pé, uns dois metros à minha frente. Trocamos poucas frases sobre a universidade e logo ela me ofereceu chá, café.
Obviamente aceitei muito antes dela perguntar se eu queria. Entramos na salinha.

O lugar estava vazio. Fui sentar ao canto e passei a observar fielmente Olga preparando meu café. Após passar-me a xícara, sentou-se na distância máxima em eu que estava. Parecia, talvez, uma sala dividida em duas áreas em que Olga e eu jamais poderíamos nos aproximar. Ela queria mesmo se manter longe, afinal, o sofá da salinha não era tão pequeno e com certeza caberia nós duas, sem apertos.

Por alguns minutos, a conversa foi tomando forma:
- "Eu ando tão cansada, me sinto fraca, sem vontade de estudar. Tudo parece difícil." - eu reclamava enquanto cruzava os braços e apoiava a cabeça no encosto do sofá. Cruzei as pernas de forma confortável, o jeans não me permitia passar por inteiro uma perna em cima da outra.
- "Espere que logo eu te convido para ir à sauna. Lá você vai poder relaxar. Faz muito bem para a pele, tento ir duas vezes ao mês, com amigas."
- "E de onde você adquiriu esse hábito?" - Tentei investigar minha presa.
- "Bem, de minha família. Na Rússia é muito comum irmos à sauna, faz bem para a saúde. Por sorte, aqui existem lugares que conseguem copiar um pouco essa experiência".

Então era isso. Olga é russa.
"Claro, sua idiota!", eu brigava internamente comigo como se fosse óbvio aquele sotaque forte, pesado que ela carregava. Agora tudo fazia sentido... o nome, o olhar, o frio da alma.

- "Que legal, você nasceu na Rússia então..." - externei a idiotice.
- "Sim, cresci lá também. Estou morando aqui há alguns anos, pela proposta de emprego, valeu a pena me mudar."
- "Agora está explicada a sua beleza então."
- "Tive avós ucranianos, toda a região leste, e a Ucrânia têm esses traços que eu tenho."

Eu estava deslumbrada com aquilo. Obviamente o país de Olga não importava, mas aquele sotaque se misturava com a terra e charme de um povo distante.

- "E você, sendo do Brasil, gosta de morar aqui?"
Fui pega no susto. Ela sabia de onde eu vinha...
Mas a emoção foi cortada à seco:
- "Os professores têm toda a informação de cada aluno; eu olhei um por um daqueles que tiraram nota baixa no meu teste."- me machucou.

- "Sou sim. E gosto bastante, embora sinta muita saudade do meu país, e aqui tudo é mais insensível."

Ao terminar minha frase, Olga afirmava que o clima do Brasil era mais confortável, melhor para a saúde. Ainda comparou nosso verão com o calor que à sauna trazia. O café esfriara.

Aqueles minutos com ela foram reconfortantes: parecíamos duas velhas amigas, ou quiçá duas eternas inimigas. Não sabia ao certo.

Um senhor, com roupas esportivas, entrou na sala.
Foi diretamente falar com Olga, cumprimentou ela com leves toques no ombro, e naturalmente abriu a boca, rodeada por um bigode branco:
- "Quem é essa?"- direto ao ponto, ele me encarou.
- " Stella, uma aluna." - Olga tomou a frente.

E por supresa, ou decepção, esse senhor começou a conversar com ela. Mas conversava misturando o inglês pobre com algumas palavras estranhas. Palavras.... russas?!
"Pois bem, mais um russo aqui", aquilo me deixou desconfortável e irritada. Do nada russos começaram a aparecer?
Eu tentei caçar palavras que fizessem sentido naquilo tudo, mas só consegui entender que ele fazia perguntas sobre mim de forma meio irônica, um ar meio malicioso, e Olga dizia "ela é minha estudante".
De repente, o sujeito se sentou perto de mim, tão perto que o bigode encardido me causava certa repulsa. Ele tinha pouco cabelo, olhos azuis, profundos. Passou a me olhar, o colo, o pescoço e estagnou nos meus olhos.
- " E os macacos?" - ele perguntou, soltando um riso de fumante, meio baixo e grosso.
- "E os ursos?" - retruquei.

Ele cessou a risada, olhou para Olga esperando que tivesse vencido na pergunta sem graça.
Olga me olhou discretamente com um ar de reprovação, como se eu tivesse desrespeitado aquele pobre senhorzinho, e ao mesmo tempo ela demonstrou um espanto e certo prazer pela minha audácia.
Eu me mantive. Continuei encarando ele na medida que me encarava.
Então ele foi se soltando, viu que ali não conseguiria ofender ninguém. Começou a perguntar quanto custava uma viagem para o Brasil, disse até que gostaria de visitar o país, conhecer as paisagens.
Eu fui educada, na medida do possível, e acho até que cativei o pobre velho.
Olga nos ofereceu alguns biscoitos de chocolate, e assim que colocou a bandeja na mesinha, o senhor começou a devorar afoito, totalmente sem pudor.
O barulho do biscoito ao ser mastigado, o movimento do bigode, tudo me enjoava. Então me prendi em Olga, na postura dela, no jeito.
Estava sentada, com uma xícara na mão, o corpo meio esticado na cadeira denunciava o cansaço matinal.
Às vezes, ela me olhava e sorria, mas não um sorriso sedutor ou atrevido: era algo envergonhado, um riso contido. Ela estava contendo algo dentro dela que eu não conseguia arrancar.
O senhor, quase finalizando os biscoitos, pausou o banquete:
- "Você mora sozinha?" - o bigode, sujo de farelo, apontava pra mim.
- "Sim, moro."
- " Que beleza!" , ele se ajeitou na cadeira, meu impaciente, e logo começou a soltar frases em russo para Olga.
Ela quase engasgou, os olhos fecharam numa gargalhada intimidadora, e as bochechas coraram.

Me senti perdida, meu rosto congelou numa expressão de dúvida do que aqueles dois conversavam. Era horrível saber que falavam e riam de mim, e eu não tinha armas para me defender.
Num corte brusco, Olga levantou e colocou a xícara na mesa. Olhou em minha direção:
- "Desculpa, desculpa..." - ela tentava voltar à seriedade- "Ele disse que aposta que todos os rapazes da faculdade gostariam de morar com você."
- "Com certeza." - disse, olhando para Olga, com cara de quem havia se decepcionado com a tradução.
- "Desculpa." - agora toda séria, ela voltara à cadeira.

O senhor, ainda risonho, levantou, pensou um pouco, voltou à bandeja de biscoitos, e saiu da sala, mastigando até a última migalha.

- "Ele gostou de você. Todo mundo quer ir para o Brasil!"
- "E você, também quer?" - me insinuei.

Sem resposta, ela, apenas num impulso, levantou da cadeira e avisou que era hora da aula. Pegou rápido o jaleco e o vestiu num movimento natural.
Eu a segui, meio deslocada, até o sofá verde lá fora. Me sentei e vi Olga se distanciando.

Naquela noite, ao chegar em casa, senti o quão vazio meu apartamento estava.

Com açúcar, com afetoOnde histórias criam vida. Descubra agora