Eles dizem que os olhos são a janela da alma

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"Afeição".

Parece um conceito muito presente no mundo dos mortais.

Bom, isso é algo que Niao sempre soube. Por muitas vezes, chantageou e ameaçou os inimigos de seu mestre através daqueles que eles amavam.

Entretanto, Niao nunca imaginou que, um dia, estaria deste lado do espectro, tendo afeição por alguém e sendo alvo da afeição de alguém.

Era um sentimento bom, caloroso; e é claro, Varis e Khulad não demoraram muito para notar as mudanças nas duas.

A princípio, eram brincadeiras leves que Niao não compreendia, mas logo percebeu como Vanaris ficava vermelha de raiva e vergonha ao ouvi-las e passou a juntar-se a elas. No entanto, não demorou para notar que eram só máscaras.

Estranho. Às vezes, de noite, quando os outros acreditavam que ela estava dormindo, Niao ouvia os três, aos sussurros, o tom sério de Khulad como um pai decepcionado, a voz alarmada de Varis que parecia gritar enquanto sussurrava, e Vanaris, às vezes defendendo-se com deboche, noutras com raiva, em raras ocasiões apenas implorando-os que a deixem em paz.

Nunca os tinha visto assim. Como se de volta aos seus tempos de espiã, Niao decidiu observar, sem interferir. Queria entender o que estava acontecendo. Parecia que ela não era a única a guardar segredos, afinal.

Quando deixaram aquele vilarejo, como heróis, após desfazerem a maldição da Frostmaiden, o grupo passou a viajar em direção sul e, pela primeira vez, Niao colocaria malícia nos ouvidos ao interagir com Varis e Khulad. Fora condescendente demais com eles, subestimara-os pela ingenuidade heróica com que sempre pareciam encarar o mundo, mas claramente havia mais sobre eles.

"Clã do Espírito Dourado". Estranho, o nome não dizia nada para ela. Nunca havia pensado nisso antes.

Nas paradas seguintes, quando podia e da forma mais sutil possível, Niao separava-se do grupo à noite, aproveitando-se da necessidade mortal pelo sono, para pesquisar. Perguntava em tavernas, lia livros em bibliotecas, procurava por outros nômades longínquos e estudiosos locais. Aos poucos, conseguiu montar uma imagem do misterioso clã de Vanaris.

Aparentemente, um grupo de linhagens guerreiras, seminômades, ao sul. Lendas dizem que são governados por uma entidade misteriosa que se apresenta na forma de um grande avatar dourado, o qual ensinou-os seus segredos, para que pudessem se conectar aos espíritos ancestrais. Não muito além disso.

Niao estava ciente de que ainda tinha sérios buracos em seu conhecimento, mas aos poucos, os conflitos entre os três pareceram se tranquilizar, embora não acabassem completamente. Então, ela decidiu continuar apenas observando, vivendo sua vida naturalmente com Vanaris e os outros dois.

Naqueles tempos, havia felicidade no olhar de Vanaris, mas em raros momentos, ela via a tristeza e preocupação por trás daquelas retinas prateadas.

"Niao."

Naquela noite, a voz de Vanaris tinha uma seriedade incomum. Era meio da madrugada, incomum que seus companheiros mortais tivessem acordados tão tarde assim.

"O que é?"

Preocupação. Isso, Niao já aprendera a identificar. Não se preocupava tanto assim com os dois homens do grupo, embora suas companhias também fossem majoritariamente positivas. O que é que Vanaris fizera com ela, que despertava esse sentimento de forma tão constante em seu peito?

"Você não dorme?"

Silêncio.

"Como é?"

"Eu vejo você fechando os olhos, ficando quieta e parada, mas nunca parece estar realmente dormindo. Tem... algo diferente. Você não fica no mesmo estado que a gente."

"Quando você notou?"

"Quando, erm... quando começamos a dormir juntas", revelou Vanaris, com uma risadinha nervosa. "Você... não é totalmente humana, não é? Tem algo de diferente sobre você também..."

O crepitar da fogueira e a brisa fraca da noite eram os únicos sons que Niao podia ouvir, além das suas respirações entrelaçadas e a voz doce de Vanaris tão perto do seu ouvido.

"Assim como com você, kalashtar."

Quando disse essas palavras, Niao notou que nunca as havia dito em voz alta. Na escuridão, viu os olhos de prata de Vanaris virarem-se para encarar os seus, um leve prender de respiração que não durou mais que um momento. Suas pálpebras se fecharam, escondendo aquele brilho de Niao momentaneamente. Lentamente, a paladina sem juramento levou uma de suas mãos ao peito de Vanaris. Sentia seu coração bater, mais acelerado que o normal, e pouco depois, a mão de Vanaris também tocou o seu peito.

"Eu não sinto sua respiração em mim quando durmo... não sinto seu coração bater quando me deito em você..." ela falava, com a voz embargada. Parecia prestes a chorar. Niao sentiu sua preocupação aumentar. "Não se preocupe, eu não falei nada para os outros, mas... você... não pertence a este lado, pertence?"

"Eu não sou uma undead", Niao replicou, firme.

"Então... então... o que você é?"

Niao não sabia responder. Fixou o rosto oculto pela escuridão de Vanaris, tentando ler sua expressão.

Ao longe, ouviu o crocitar de um corvo. Sentiu raiva. Sentiu como se debochassem dela.

Então, suspirou, resignada.

"Eu fui... criada por uma entidade poderosa, a quem não sirvo mais. Fui feita para parecer humana. Não acho que exista uma classificação correta para o que eu sou. Mas estou viva, talvez pela primeira vez em... pela primeira vez desde que nasci", ela suavemente corrigiu-se, antes de revelar demais sobre a própria idade. "Não sou uma undead", ela assegurou.

Vanaris assentiu.

"Mesmo que fosse, eu... não muda o que eu sinto por você."

Niao acariciou o seu rosto, um sorriso leve se formando em seus lábios.

"Afeição" parecia um conceito muito presente no mundo dos mortais, e "amor", genuíno, puro e intenso, parecia algo que eles perseguiam constantemente.

"Eu também te amo, Vanaris."

Seu nome soava tão doce na sua língua.

Niao nunca pensou que, um dia, estaria deste lado da moeda.

Que, um dia, usaria seu corpo dessa forma para o prazer próprio, em vez de servir, subornar ou chantagear a outro.

Que seria capaz de sentir ou reconhecer prazer, próprio e individual, e a vontade de senti-lo.

Que seria capaz de sentir ou reconhecer prazer, próprio e individual, e a vontade de senti-lo

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