Uma consequência do livre-arbítrio

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Naquela noite, Niao se aproveitaria do longo sono de seus companheiros mortais para fazer uma visita ao templo da vila próxima.

Encontravam-se numa estrada tortuosa, acampando à encosta de um pequeno morro. Os outros não sabiam, mas Niao, por suas inúmeras viagens, sim: do outro lado daquele morro, encontraria um pequeno vilarejo anão, no qual muitas vidas atrás assassinara um certo clérigo, herói dos locais, por alguma razão que já não se lembra mais.

Lá, havia um templo de pedra, com janelas sem vidraças, à beira de um rio. Com as portas sempre abertas, a brisa fresca por ali passava livremente.

Muito conveniente, para o que Niao estava prestes a fazer.

Antes de entrar no templo, seu olhar cruzou-se com o de um corvo negro, pousado sobre o arco de entrada. Por uma fração de segundo, Niao estacou, encarando-o. É como se estivessem se comunicando, porém sem palavras.

"Seu passado já se foi, mas ele sempre estará com você."

"Não importa, eu quero queimá-lo."

"Não é necessário, mas... bom, suponho que a escolha seja sua."

Essas palavras nunca foram realmente trocadas, mas Niao sente como se as memórias de um diálogo exatamente assim tivessem sido implantadas em sua mente. Na memória falsa, ela e o corvo se encontram num plano sem chão, horizonte ou firmamento, completamente negro, mas o corvo parece uma sombra negra e humanoide, sem feições.

"É escolha minha", Niao se daria conta. O que exatamente essa realização poderia significar? Não sabe, mas foi como tirar um peso das costas.

Com um crocitar, o corvo abriu as asas e levantou voo, saindo de cena.

O instinto diria a Niao, no entanto, que aquela não era a última visita sobrenatural da noite.

Ao cruzar o arco de entrada daquele templo, uma nova presença se faria conhecida. Ela nada falaria, no entanto, apenas observaria Niao à distância e, por isso, Niao também não dirigiria a palavra a ela.

Enquanto a guerreira traidora buscava as ferramentas que precisava, na forja anexa ao tempo, sentia os olhos da entidade sobre ela.

Engraçado como se lembrava tão bem do templo. Tudo estava exatamente como da última vez, há... já não sabe quantos anos.

Pensando bem, a que deus anão esse tempo teria pertencido?

"Niao Akane", a voz de uma mulher soou às suas costas. Era uma voz suave, aveludada, neutra.

"Hm, achei que nunca ia me dirigir a palavra", ela responderia, sem desviar os olhos da forja, que já começava a aquecer.

"Lembra-se de mim?"

"Não."

"Veja-me."

Suspirando, ela se viraria, para se dar não com uma clériga, ou sacerdotisa, ou mesmo o avatar de alguma deusa, mas uma sombra na vaga forma de um ser humanoide.

Através daquela sombra, no entanto, Niao viu: o clérigo a quem assassinara, há muitas gerações de anões, mas não só ele. Também haviam dezenas, centenas, de outros rostos e almas. Como se aquela sombra fosse a manifestação de todos aqueles que morreram nesse vilarejo.

 Como se aquela sombra fosse a manifestação de todos aqueles que morreram nesse vilarejo

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Embora a sombra não tivesse expressão, Niao percebeu que ela sorria.

"Você entendeu."

"Entendi."

"E vejo que, finalmente, libertou-se de seu antigo mestre. Como te implorei que fizesse quando veio até aqui, tirar minha vida, há 600 anos."

"Não é uma coisa que se escolhe. Outra coisa aconteceu que me deu o poder de escolher."

"Que bom que aconteceu, então."

"Qual o seu interesse nisso?"

"Yeenoghu é um velho inimigo meu, desde muito antes da sua criação, diga-se de passagem. Sou especialmente reverenciada aqui em Gagria, e os nativos daqui são os meus pequenos protegidos."

Niao franziu o cenho.

"E você é?"

"Sou Valkauna, a Escultora de Runas. Ou melhor dizendo, uma parte dela. Uma manifestação dos espíritos leais a ela que aqui pereceram. É um prazer finalmente te conhecer, Niao Akane."

"Valkauna..." fez Niao, pensativa. "Nunca ouvi falar."

"Ouviu, mas esqueceu. Eu sou aquela que registra e se lembra do nascimento, da vida, da morte e de cada juramento de cada anão que já existiu. Gagria, como muitas outras vilas antes dela, se opôs ao seu antigo mestre, Akane, que ordenou a nossa destruição. Pelas suas mãos e, também, pelas mãos daquela a quem você se refere como o seu espelho."

"Isso já aconteceu muitas vezes. Não conseguiria lembrar de um único lugar dentre tantos."

"Suponho que não."

A forja já estava quente. Suspirando mais uma vez com o que estava prestes a fazer, Niao deixaria suas armaduras caírem e despiria suas roupas, revelando a tatuagem do malho de três cabeças de Yeenoghu em suas costas, não feita com tinta, mas cicatrizes, à carne viva em sua pele, numa brutal tradição de cicatrização desenhada pelo próprio Yaka que perduraria em todos os seus corpos seguintes.

Sentiu um calafrio na espinha quando encarou aquela ferramenta de ferro escaldante em suas mãos. Já passara por torturas antes, mas infligidas por outros, não por ela mesma. Tendo a escolha do que acontecer, e tendo vontade própria para não precisar se sacrificar por um mestre, sentindo seu corpo como seu para que a dor seja tão mais real do que jamais foi, era muito mais difícil do que a princípio parecia, seguir com este plano.

"Precisa de ajuda, criança?", a sombra ofereceu.

Pensando bem, seria difícil enxergar as próprias costas de qualquer forma, ver o que estava fazendo. Niao fecharia os olhos, acalmando a respiração, e estenderia o ferro à sombra aparentemente incorpórea. Em vez de tomá-la entre as suas mãos de fumaça, o utensílio começou a flutuar à sua frente, como se ignorando a gravidade.

Com uma última olhada na expressão sem feições de Valkauna, Niao se ajoelhou de costas para ela.

Naquela noite, a dor das queimaduras em muito a lembrou de quando fez o pacto com o corvo.

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