Livre

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Quando a batalha terminou, havia tantos corpos kalashtar quanto corpos gnolls espalhados, não somente pelo cume da montanha e ao redor do templo, como também nas áreas em torno, na casa das dezenas, formando pequenos rios de sangue.

No entanto, o céu ainda preservava um azul-pálido matinal, com raras nuvens brancas e um tímido Sol frio de inverno.

Ao menos dessa vez, no entanto, o Espírito Dourado derrotou as forças de Yeenoghu.

Entre a pilha de corpos sendo queimados, Niao viu Amaterasu, um meio-sorriso sádico ainda vidrado em seus olhos, as mãos geladas segurando-se firme à katana.

Não costuma levar mais do que poucos dias para Yeenoghu trazê-las de volta, a cada vez que morrem.

A Kalavrea encontrava-se gravemente ferida, mas ainda andando por aí, distribuindo ordens enquanto estancava o sangramento no abdômen com as próprias mãos.

Vanaris não dava atenção, concentrada demais em segurar o corpo de Niao bem próximo ao seu, rosto enterrado em seu peito. Niao acariciava seus cabelos, fingia não perceber seu choro silencioso.

Era verdade, afinal. Ela ouviu quando a Kalavrea se dirigiu a Niao. Seja ela quem for, sua mãe já não fala com ela há muitos, muitos anos.

Então, o celestial ladrão de identidades se aproximou. Para a surpresa de Niao, arrancou os pedaços da máscara que ainda estavam em seu rosto, revelando feições jovens demais para o que deveria ser a mãe de uma mulher de quase 30 anos.

Como se ela tivesse parado no tempo. Como ela.

"Não me interessa quais são suas intenções, serva de Yeenoghu, nem se nos ajudou hoje. Você está, para sempre, banida dos territórios do nosso clã."

"Também te amo, sogrinha."

O celestial fechou aqueles punhos que não lhe pertenciam, como se tentando não socar sua cara irreverente. Os braços de Vanaris apertaram-se mais ao redor de seu corpo ao ouvir a voz de sua mãe.

Niao não fez qualquer menção de se mexer. Continuou ali, acariciando os cabelos da garota.

"Unicamente porque Lavia gostou de você, e nós estamos de bom humor hoje, você tem até o pôr-do-Sol para sair daqui. Senão, morrerá."

"De novo?"

"Niao..." a voz chorosa de Vanaris a fez parar com a provocação.

O celestial, vestido com o corpo de Lavia, deixou-as, não sem deixar claro seu péssimo humor.

A noite se aproximava e Niao ainda não sabia o que fazer. Como abordar.

"Você quer vir comigo?"

"Eu... não posso."

"Você viu ela, Vanaris. Aquele... ser, seja o que for, quer fazer o mesmo com você."

"Minha mãe ainda está lá dentro... você ouviu, não ouviu? Ela... eles... ai deuses, isso é tão confuso..."

"Calma, relaxa."

"Eles... disseram que ela quer isso, que disse aquilo, que pensa tal coisa... ela ainda está lá. Eu não posso ir embora."

"Você não tem ideia de como tirá-la de lá, Vanaris. Pode ser que não tenha como."

"Eu não me perdoaria se não tentasse."

"E como você vai enfrentá-los sozinha? Você ouviu o que ele disse, não posso ficar aqui... venha comigo, vamos recuar para algum lugar seguro, podemos estudar essa condição e achar uma solução, e voltamos quando soubermos o que fazer."

"Eu não posso, Niao. Eu não posso ir embora, não posso, não posso e não posso, você não entende?!"

O Sol já começava a descer, cada vez mais rápido, em direção ao horizonte.

"Eu... sou... leal ao meu clã", Vanaris continuou, com a voz embargada, usando todas as suas forças para segurar o choro.

"Nem sempre a lealdade é uma qualidade, Vanaris", murmurou Niao, pondo-se de pé lentamente. Não queria deixá-la. Queria poder continuar ali, consolá-la, ajudá-la, resolver todos os seus problemas. "Eu estou indo para o norte. Vou tentar não me fazer muito difícil de ser encontrada, por você. E você é boa com rastrear monstros de qualquer forma, não é? Vai ser fácil me achar."

"Você não é um monstro..."

"Não, mas o princípio permanece."

Niao embainhou sua odachi. O céu já começava a assumir um tom alaranjado. Realmente, realmente não queria ir... como é estranho, desejar coisas. Não consegue entender a lógica por trás disso. Porque é que mortais desejam coisas? Porque é que ela deseja coisas?

Inclinou-se sobre Vanaris, depositou um último beijo em sua testa. Começou a afastar-se, a princípio, andando de costas, só para poder vê-la por mais tempo. Vanaris acenou, tímida. Niao acenou de volta.

"Eu te amo", ela viu as palavras se formarem nos lábios da ruiva, embora som algum saísse deles.

"Eu também te amo", ela respondeu na mesma linguagem silenciosa.

E virou-se, rumo a um novo, solitário horizonte.

Mau AgouroOnde histórias criam vida. Descubra agora