Iniciação

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Toda a cidade tinha um ar solene naquele dia.

Até mesmo os bardos brincalhões da linhagem Pinkstar e os guerreiros beberrões dos Brownbear pareciam sentir e respeitar.

Cada membro do clã, naquele dia, cobriu todo o seu corpo com um pesado manto e capuz nas cores de sua linhagem e escondeu o rosto com máscaras. De acordo com Khulad, as máscaras representavam os espíritos guardiões de cada linhagem: o urso dos Brownbear, o espírito azul dos Bluespirit, a bem-humorada tiefling cantora e dançarina dos Pinkstar, o golfinho verde dos Greenwater, a fênix vermelha dos Redhair, a máscara totalmente branca, sem feições ou detalhes, dos Voidwalker, a coruja negra dos Blackwood e, é claro, a caveira branca dos Silvereye.

Apesar das centenas de pessoas nas ruas, havia um silêncio de respeito mortal, nada da festança madrugada adentro do dia em que chegou.

Varis veio bem cedo encontrar Niao, para entregar a ela uma capa da cor de seu clã. Explicou que normalmente ela usaria a capa da cor daquele que a convidou, nesse caso Vanaris, mas uma forasteira usar o cinzento dos Silvereye, ainda mais num dia como hoje, não seria bem-visto. Niao não reclamou, gostava de vermelho, até achava que combinava mais com ela.

Por quase uma hora, caminharam, como numa procissão, em direção ao topo da montanha próxima. Ela possuía um caminho bem demarcado por pedra e cercado por muretas com lanternas.

Naquele topo, encontraram um templo de pedra. Pequeno, simples, parecia até ter sido construído às pressas, quase como se algo meramente provisório.

Lutando para chegar até a frente da fila, acompanhada por Varis e Khulad, Niao finalmente a viu. Mesmo de costas, sem a sua capa branca, em vez disso com um pesado manto cinzento no lugar e a máscara de caveira cobrindo-lhe o rosto, poderia reconhecê-la em qualquer lugar: Vanaris. A estatura, os ombros erguidos, o foco inconfundível na entrada do templo, jamais a enganariam em lugar algum.

A procissão parecia fazer uma espécie de semicírculo ao redor da sua mais nova iniciada.

As portas do templo se abriram ruidosamente. O som, similar ao de pedras sendo afiadas contra pedras, era um tanto irritante, mas logo cessou.

Se é que era possível, o silêncio se tornou ainda mais profundo. Diante de todo o Clã do Espírito Dourado, estava a Kalavrea, à primeira vista, somente outra guarda de manto cinzento, máscara de caveira, foices à cintura, mas sua maneira dignificada de se portar, a reverência e respeito na postura de cada presente, o calmo segurar da respiração, como se diantes de uma fabulosa inspiração, deixavam claro que não era qualquer uma.

Ela passeou os olhos lentamente ao redor, como se analisando a alma de cada membro de seu clã.

Seus olhos, no entanto, pararam em Niao, e a forasteira a encarou de volta. Havia algo de estranho naquela mulher. Assim como o resto de seu clã e a própria Niao, ela não era humana, embora assim parecesse, mas Niao sentiu que ela era mais não-humana do que o resto dos não-humanos de seu clã.

Niao chamou os sentidos divinos – ou demoníacos – a ela presenteados por Yeenoghu.

Não restava dúvida: tratava-se de um celestial. Ou talvez parte de um celestial. Ou algo que, um dia, foi um celestial. Uma forma completamente aberrante e corrompida de um celestial, como se tivesse sido arremessado penhasco abaixo e depois tivessem juntado seus cacos aos de qualquer criatura que encontraram no caminho para mantê-lo vivo, como alguma distorção do conceito de golem.

Não era somente isso. Havia um forte cheiro de maldição e profanação, quase tão nojento quanto a máscara em sua cintura.

A Kalavrea ergueu sua mão magrela lentamente, sem tirar os olhos de Niao.

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