03- CONFORTO DO LAR

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MARIA LUIZA BITTENCOURT.

-Seus olhos, meu clarão Me guiam dentro da escuridão Seus pés me abrem o caminho
Eu sigo e nunca me sinto só
Tribalistas – Velha Infância-

Às vezes, eu achava que vivia em um comercial de margarina e ninguém tinha me avisado.
Meus pais eram aquele tipo de casal que realmente se amavam. Não existia nenhum questionamento acerca do assunto. Eles sempre estavam se tocando e pareciam ser o porto seguro um do outro. Chegava ser estranho imaginar que tiveram um início de relacionamento tão conturbado.
Queria dizer, não a parte do namoro e essas coisas. Isso foi tranquilo. Eles se conheceram na escola, se apaixonaram e ficaram juntos. Nada dramático nem emocionante. Tudo mudou de figura quando eu cheguei nesse mundo.
Minha mãe era filha de uma família tradicional de São Paulo, já meu pai era herdeiro de uma das famílias mais ricas do Brasil. Eles não aguentaram a pressão do mundo das suas costas com tão pouca idade e o relacionamento sucumbiu. Ficaram separados por dois anos quando meu pai foi estudar nos Estados Unidos — uma tradição familiar. Ele, assim como eu, foi obrigado a passar os dois últimos anos da faculdade lá para tirar duplo diploma.
Foi uma época bem difícil. Eu via meu pai de três em três meses, e as brigas deles eram frequentes. Eles eram novos demais, com responsabilidades demais e isso gerou muitas tensões. Lembrava-me bem dessa época, tinha entre cinco e sete anos. Assim como me recordava de quando eles voltaram.

Lembrava-me da felicidade. Dos olhos brilhando. Dos suspiros.
Meus pais se amavam verdadeiramente, e eu achava isso incrivelmente bonito. Era um conforto crescer em uma família como a minha.
— Maria Alice, você não pode levar Coca-cola para a escola! — Minha mãe berrou.
Gritos como esse eram comuns pela manhã. Minha irmã tinha uma predileção quase sádica em irritar nossa mãe.
Bom, talvez, o título de família de comercial de margarina fosse um pouco de exagero.
— Mas, mãe, o que custa me deixar ser como as outras crianças?! — indagou, suplicando com aqueles olhinhos verdes que faziam até mesmo o sem coração do Augusto perder a compostura.
Malí era o terror dos meus pais. Vivia se metendo em encrenca e conseguia tudo o que queria com sua lábia e inteligência.
— Custa a sua saúde. — Meu pai entrou na cozinha de nossa casa, beijando a bochecha da minha irmã do meio, Maria Julia.
É, eu sabia. Meus pais podiam até ser bons pais, mas de forma nenhuma eram criativos na hora de escolher os nossos nomes.
Majú tinha dez anos e estava começando a entrar na pré-adolescência. Ao contrário de mim, que era mais calma e tímida, ela era descolada e popular. Sim, com dez anos, já dava um banho em mim, que tinha vinte e dois, no quesito habilidade social.
Minha irmã do meio tinha milhares de seguidores por causa das dancinhas que fazia no TikTok. Já eu, nem redes sociais tinha. Agoniava-me aquele tanto de pessoas vendo minha vida. Sem contar que nosso pai era babão demais, então, qualquer coisa que uma de nós fizesse, lá estava ele, mostrando para todo mundo.
De vergonhosa, já bastava minha existência.
— Mas, pai, o Joaquim, da minha sala, leva! E a Pietra também! — Malí rebateu, cruzando os braços.
— Não, Maria Alice! — Minha mãe fechou a lancheira enquanto dizia, brava. — Nunca deixei que comesse essas porcarias em dia de semana e não será agora que irei deixar. Pergunte às suas irmãs se isso era permitido com alguma delas.
Minha mãe era uma ótima mãe. Sempre presente, observadora e muito amiga, mas não havia nada que se importasse mais do que com a nossa saúde. Sempre tivemos que fazer atividade física — um grande tormento

para mim —, além de ter uma dieta balanceada. Porcarias apenas no final de semana. Isso era uma regra da qual ela não abria mão.
— Papais são chatos assim mesmo. — Majú comentou, olhando para o celular enquanto deslizava os dedos sobre a tela.
— É para o seu bem, Malí — falei, passando a mão pelos seus cabelos loiros e lisinhos.
Até porque, quem queria beber Coca-cola no meio da manhã? Meu estômago até revira só de pensar nisso.
Depois da faculdade de Arquitetura, eu desenvolvi uma gastrite que me fez beijar os pés da minha mãe por ter cuidado da minha alimentação com tanto carinho. Dois anos de fast-food e refrigerante diariamente me cobraram um preço gigante.
O precinho que eu pagava por ser desobediente.
— Lembra daquele exame que sua irmã teve que fazer em janeiro? — Papai perguntou, olhando para a pequena terrorista depois de pegar seu café.
Assim como eu, ele só bebia puro e sem açúcar. Parando para pensar, eu era muito parecida com meu pai. Éramos dois obcecados por filmes antigos, viciados em trabalho e com uma bondade cega que chegava a irritar a pobre da minha mãe.
Minhas duas irmãs já eram mais parecidas com ela. Melinda Bittencourt era uma advogada talentosa e sem muita paciência. Ao contrário do meu pai, gostava muito do seu trabalho, mas não era o motivo das suas noites mal dormidas. Minha mãe era vaidosa, sociável e adorava uma tarde no shopping com suas amigas.
Como alguém podia gostar tanto de fazer compras e ir ao cabeleireiro seria sempre um mistério para mim.
— Lembro, pai — respondeu, emburrada. — Mas ela é velha. Não vou ficar tendo dor na barriga por causa da Coca. Vai ser só uma vez.
Eu? Velha? Era por isso que ela conseguia se dar bem com o crápula. — Não. Isso não é negociável, Maria Alice. — Minha mãe cortou o
assunto. ⎯ Maria Julia, a louça é sua. E você — olhou diretamente para
mim —, me conte. Como está o trabalho com Augusto? Ele está te tratando bem?
— Ah, é o Augusto, mãe... — Meu pai observava nossa conversa com atenção. — Ele é muito bom no que faz e, consequentemente, bem rígido, mas estou indo bem.

Nossas primeiras últimas vezes....Where stories live. Discover now