Yi virou no corredor que dava acesso a sala de seu pai e viu as portas abrirem, e logo em seguida se fecharam. Seu coração estranhamente acelerou ao ver o homem forte e com a estatura que igualava a de seu pai. Apesar das roupas simples, o modo como seus ombros estavam perfeitamente eretos deixava claro que nem sempre fora um plebeu. Yi o reconheceu imediatamente, se tratava do mesmo camponês que visitara o imperador da última vez.
O homem parou diante da porta, no destino final de Yi, a presença dele ali parecia tão natural. Como se o palácio não lhe parecesse uma realidade distante. Embora o sujeito ainda estivesse de costas para ele, sem o notar, o lorde o encarava intrigado. Quando cogitou se aproximar dele, a porta abriu de maneira brusca.
— Wu Cheng!! Você tem que me ouvir. Dará certo, eu prometo – disse o imperador.
— Fang – falou intimamente. — Eu não quero mais falar sobre esse assunto.
— O que eu deveria fazer então? Esquecer? Você é meu irmão, não posso continuar ignorando isso – replicou elevando a voz.
Cheng desviou o olhar do irmão incapaz de redarguir.
A cena não durou mais do que alguns segundos. Tempo suficiente para deixar o lorde imóvel. Yi escutara a tudo sem se mover um centímetro. Não haviam retratos de seu tio pelo palácio, nem mesmo existiam registros de como ele se chamava. E agora estava diante dele com várias interrogações se formando em sua cabeça. Seu corpo começava a reagir recuando, o que fez o piso estalar. O imperador e seu irmão viraram-se em direção ao ruído.
— Yingge!? – exclamou o imperador.
O lorde estava confuso demais para falar qualquer coisa. Então continuou recuando, mas não tão rápido quanto gostaria. Seu pai o alcançou segurando-o pelos ombros.
— Eu posso explicar. Yingge!?! – gritou para despertá-lo de seu transe.
Yi sacudiu a cabeça clareando as ideias e tirou as mãos de seus ombros.
— Você não passa de um mentiroso. Não espere que eu escute o que tem a dizer.
— Deixa que eu falo com ele.
— Cheng? – falou olhando para o irmão. — Está bem.
O imperador retornou para a sua sala receoso que Yi não o perdoasse.
— Venha tenho uma história para lhe contar, jovem lorde – disse Cheng acenando para que ele sentasse com ele.
— Yi. Me chame de Yi. Pelo que entendi você é o meu tio, certo?
— Sim, eu sou.
Yi teve uma impressão vaga de tristeza soar na voz dele, e se acomodou ao seu lado.
— Da última vez, eu o vi no palácio.
— Às vezes eu venho aqui visitar seu pai. Ele anda planejando algo que eu tento tirar da cabeça dele toda vez. Seu pai não é a pessoa que todos pensam. Essa é somente a imagem que os nobres criaram para ele.
— Do que está falando?
— Você parece mais calmo agora. O que acha de deixar ele te contar?
— Impossível. Somos muito diferentes, e sempre que tentamos conversar acabamos discutindo.
Você é mais parecido com ele do que imagina. Pensou Cheng.
— Bom, não direi mais nada a você – disse levantando-se. — Terá que ouvir o resto da história pelo Fang.
Yi revirou os olhos, mas assentiu. Cheng caminhou até a porta e a deslizou para abrir. Agora que estava mais perto podia notar a semelhança dele com seu pai. Exceto pelas roupas, ele conseguia ver traços do pai em seu tio. Assim que ele entrou, Yi também passou para dentro.
— Fang – falou chamando o irmão que estava de costas. — Ele escutará o que tem a dizer.
— Que bom.
Os dois sentaram de frente um para o outro, enquanto Cheng sentou em uma das cadeiras laterais apoiando o queixo em uma das mãos.
— A realidade que os nobres tentam esconder é que bem maior do que imagina. E é tudo culpa minha – começou Cheng.
— Não é. E nosso pai também achava isso – virando-se para Yi completou. — A primeira coisa que precisa saber é que diferente do que muitos acreditam, Cheng não é cinco anos mais velho do que eu.
— Como assim?
Apesar de não ter muitas informações sobre o tio, essa era a única verdade que conhecia. Ao menos acreditava nisso.
— Cheng é meu irmão gêmeo. Ele nasceu cinco minutos antes de mim.
Yi arregalou os olhos incrédulo. As palavras do pai ecoaram em sua cabeça tentando se fazer entendíveis. Isso justificava a aparência quase idêntica entre eles.
Cheng deveria assumir como o novo imperador, e sabia das suas responsabilidades. Mas os nobres não reconheceram a camponesa por quem se apaixonou como uma Lady. O império Wen também estava envolvido e possuía poderio maior que o deles, ainda que tivessem mais contatos com os mercadores. E era esse benefício que eles buscavam. Contou Fang, que ficou de pé e caminhou até o outro lado da sala.
— Tudo seria resolvido através da unificação dos impérios – concluiu Cheng olhando para o irmão, sabendo onde a conversa levaria.
— Mas o império Wen só teve uma filha – falou pausadamente.
— Sim, a sua mãe. O acordo seria selado com o casamento dos dois – confirmou seu pai.
Yi sentiu como se tivesse levado um soco no estômago, era como se as informações o deixassem embriagado fazendo sua cabeça girar.
— Eu recusei a proposta deles e fui acusado de traição e afronta. Disseram que a minha decisão causaria uma guerra.
— Com a recusa de Cheng, os nobres e o imperador Wen exigiram que nosso pai o destituísse para que eu pudesse assumir como herdeiro e casar com Jiahui.
— Apesar da ameaça, meu pai ficou do meu lado e me apoiou assim como Fang.
— Mesmo assim você escolheu partir – sua voz não carregava acusação, nem mágoa, só culpa por não ter feito mais pelo irmão.
Cheng sabia que sua partida havia deixado um vazio no coração do irmão, que ainda teve de lidar com a morte do pai sozinho. Ele não resistira a ausência do filho. A mãe dos dois falecera alguns dias depois do parto. Fang perdeu a mãe sem conhecê-la, e viu seu pai morrer de tristeza. O seu irmão gêmeo fora destituído e ele não pôde fazer nada. Depois de explicar isso a Yi, Cheng piscou algumas vezes para conter as lágrimas, Fang fez o mesmo e voltou para a sua cadeira. No fundo nenhum dos dois conseguiam perdoar a si mesmo.
— Seu tio abdicou de tudo e foi embora. Ele pediu para não irmos contra a potência do império Wen, nem contra os nobres que estavam do lado deles. A mão de sua mãe foi concedida a mim pelo pai dela, logo que me tornei imperador. Além de ser a esposa imperial, ela também se tornou uma consorte.
— Você… a ama? – seus olhos buscaram os de Fang.
Ele deu uma risada fraca, e afastou o cabelo do rosto com uma das mãos antes de falar.
— Sua mãe é egocêntrica, tem uma personalidade difícil e ideais com os quais eu não concordo, por causa disso a gente discute algumas vezes. Ainda assim, eu a amo – Yi pôde ver um brilho no olhar do pai.
— Sei que ela acha não recebe a mesma atenção que Lianyi, mas isso não a torna menos querida para mim. Eu gostei da sua mãe desde o primeiro dia em que ela pisou no palácio. É difícil fazer ela mudar de opinião, no entanto eu estou me esforçando para tornar claro o meu amor por Jiahui.
— Está bem – disse levantando as mãos, se sentindo envergonhado com o discurso do pai. — Você elucidou demais.
Yi esfregou a testa tentando apagar qualquer imagem que tenha tido dos pais. A tranquilidade com que a conversa seguiu era como a calmaria que precede a tempestade. Fang olhou para o irmão de soslaio com ar felicidade agradecido por estar ali.
— Tem uma coisa que gostaria de lhe pedir – falou o imperador com seriedade.
Yi balançou a cabeça esperando pelo o que ele diria.
— Não conte a ninguém sobre o que conversamos. Os nobres dos dois impérios não podem ficar sabendo que ainda mantenho contato com Cheng, isso nos colocaria em uma situação delicada.
— Tudo bem, eu manterei em segredo. Mas eu não conseguirei esconder isso de Shizhen.
— Não se preocupe, ele já sabe a verdade.
— Sabe!? – Yi exclamou surpreso.
Cheng olhou para Fang sem entender. Nos pensamentos de Yi pairava uma pergunta que abalaria a confiança que tinha no irmão. Há quanto tempo ele sabia?
— Shizhen!! – chamou Fang. — Venha até aqui.
Os dois olharam confusos para a porta aberta e viram Shizhen surgir no corredor. Ele entrou sem muita firmeza nos passos por ter sido descoberto. Yi percebera então o que estava acontecendo.
— Você estava escutando conversas alheias, de novo?
A expressão no rosto dele indicava culpa. Ao menos sentia vergonha por ter escutado, o que fez Yi relaxar.
— Eu estava apenas passando – disse, fazendo Yi sorrir. — Na verdade eu estava preocupado com o que você conversaria com o nosso pai, e decidi vir até aqui.
O sorriso desapareceu e ele olhou feio para o irmão, em repreensão.
— Como você soube? – indagou para desviar a atenção dele.
— O sol de primavera refletia a sombra de Shizhen no chão.
— Entendo. Bem, não contaremos nada a respeito do que vocês nos revelaram – disse de pé. — Vamos Shizhen.
— Espere. O que você queria me falar?
— Eu? Nada – mentiu.
Depois de escutar a história de como fora a vida de seu pai, ele não se julgava capaz de encará-lo agora. Tinha uma visão totalmente errada, e seu orgulho não o deixaria admitir.
— Não precisa ficar constrangido – Fang sabia como jogar com Yi para fazê-lo falar. — Você é meu primogênito, o modo como me trata não faz meu amor por você diminuir. Pode pedir o que quiser.
O rubor fazia o rosto de Yi arder.
— Tsc. Eu não estou nem um pouco constrangido – disse torcendo o nariz.
— Então você não odeia o seu pai? – provocou o imperador.
— É claro que não – gritou sem pensar, e desconversou. — Quero dizer, não tenho razões para odiá-lo. Mas não é como se eu fosse dizer aqui que o amo, e que me arrependo da forma como agia com você.
Considerando o seu orgulho e habilidade de mentir, era praticamente isso que queria dizer.
— Tudo bem, eu entendo.
O imperador mordeu o lábio inferior para não rir. A capacidade de mentiras de Yi, cria diálogos interessantes. Se divertia Fang com o comportamento do filho.
— Mas, afinal, o que tinha a me falar?
— Quero que anule o meu casamento com Yuexiu – falou
— Por que eu faria isso?
— Porque… – Yi hesitou por um instante, não sabia como explicar. — Porque não é ela quem eu amo.
— Você está gostando de outra garota? Podemos fazer dela sua segunda esposa, então – disse testando Yi.
— Não!! Shizhen está apaixonado por Yuexiu, não posso continuar casado com ela.
Fang arqueou as sobrancelhas fingindo descobrir naquele momento.
— Eu não sabia quem era, no começo. E Yi em meio disso tudo acabou se apaixonando pela senhorita Daji, a dama de companhia de sua esposa – completou Shizhen.
— Ah – foi a primeira reação de Fang. Ele olhou para os dois que estavam do lado um do outro e sorriu. — Bem, a maioria dos casamentos são guiados por benefícios, como riquezas, terras e poder social e militar. O meu primeiro casamento envolveu todos esses. Mas eu amava a Jiahui, por tanto não me importava.
Fang não mencionara o amor, pois sabia muito bem que era impossível existir uma união vinda desse sentimento. Nem sempre os casais se uniam pelos sentimentos. Porém tudo o que desejava era que os filhos pudessem escolher as próprias esposas.
— Que bom que encontraram um amor recíproco – se aproximando deles, continuou. — Meu último feito como imperador será anular esse casamento, e dar a mão de Zheng Yuexiu para Shizhen, a tornando sua esposa imperial.
— Último!? – perguntaram em uníssono.
— Ah, é. Esqueci de lhe falar Yi – disse passando a mão no cabelo enquanto sorria, claramente mentindo. — Quando você completar 22 anos assumirá como o novo imperador das propriedades Wu e Wen.
— Mas… o quê!? Como você me diz isso com essa calma!? Eu não estou apto a fazer tal coisa.
— Você nunca disse a ele? – perguntou Cheng.
Fang deu de ombros.
— Ele ainda não estava pronto. Mas depois que as senhoritas Song e Zheng chegaram ao palácio, o modo como se portava mudou. Eu o observei durante esse período e você amadureceu bastante.
— Eu… eu não sei se consigo.
— Será difícil no começo lidar com os nobres, mas eles perceberão a sua mudança. No entanto, a sua união com a família Song é o que mais me preocupa.
— Porque? Você não aprova?
— O problema não é seu pai, mas sim os nobres – interviu Cheng.
— A senhorita Song Daji não tem posses ou quaisquer vantagens a nos proporcionar. O conde Song tem apenas um título de nobreza, mas só – explicou seu pai.
— Nesse caso, ela tem algo a oferecer sim. Eu andei investigando a situação de Daji e descobri que seu pai fora enganado por uma de suas esposas. Porém, há como reaver as terras do conde, além disso, minha futura esposa não pertence a este império.
— Eles não são desse império? – indagou Fang.
— Não. A família Song é do império Lang. Temos chances de negociar com os nobres – falou Yi, confiante.
— Ótimo. Darei início ao processo de anulação e também conversarei com o duque Zheng – virando-se para Shizhen, avisou. — Você irá comigo.
— Certo – concordou Shizhen.
— Aproveitarei esse momento para auxiliar Yi na recuperação da propriedade Song.
— Ficarei mais tranquilo com você ao lado dele.
— Obrigado – falou Yi.
— Teremos uma única oportunidade Yi, faça o seu melhor. Mesmo que tenha o meu apoio e se torne o imperador, a influência dos nobres pode mudar tudo.
— Eu sei pai, mas irei convencê-los.
— Me chamou de pai? – perguntou com um ar triunfante, mas sem escárnio.
— Você está ouvindo coisas – disse virando-se de costas para que não visse o seu rosto. O imperador obrigou-se a não rir. — Venha Shizhen, precisamos falar com elas.
— Ok.
Fang abriu um sorriso genuíno quando os dois saíram. Era a prova de que Yingge não guardava mais nenhuma mágoa do pai. Cheng não entendeu o que acontecera, mas nem precisou. Suas emoções eram fáceis de serem lidas.
O entardecer trazia a brisa das flores do palácio. E em pouco tempo seria o aniversário de Yi. Esse era o primeiro teste que ele enfrentaria para estar ao lado de Daji, antes de assumir o seu lugar como primeiro herdeiro.
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Minha Senhora Predestinada
Historical FictionYuexiu costumava sair escondida para praticar qinna em sua província com a ajuda de Daji. Porém, as suas quase tranquilas vidas mudam completamente quando Yuexiu aceita entrar em um casamento por contrato para quitar as dívidas do pai. A única condi...