dois

188 33 5
                                    

Não sei dizer quando foi a primeira vez, mas definitivamente teve uma e eu, numa quarta-feira luminosa de satélite natural e passos apressados para casa às sete da noite, posso dizer com convicção que aquela definitivamente foi a terceira vez que o encontrei.

Na primeira não me recordo, na segunda gostaria de não me recordar, a terceira, definitivamente, eu já não queria existir.

Meus olhos foram atraídos para a imagem de um cara manchado de flores e existência enigmática em uma rodinha de pessoas na pista de skate, eu pensei em passar ainda mais longe do que já estava, talvez por um preconceito enraizado na minha mente supérflua, talvez por outro motivo, mas quando o vi ali, com jeans surrados, regata e all star amarelo, rodeado de pessoas que eu julgaria até o último fio de cabelo, me mantive estático, como uma sombra ao luar de Marte ou uma estátua na praça pública, um esquisitão sem reação.

Quando voltei para a realidade, o encarava como um psicopata na penumbra, escondido entre paredes da casa da vítima, esperando o momento certo para atacar, mas foi ele quem me atacou. Eu senti algum desespero se apoderar de minha existência mutável, me fazendo recuar alguns passos em confusão, enquanto aquele rapaz, de olhos puros e cílios de borboleta trazia seus passos seguros e afáveis até mim, ou pelo menos era o que eu achava.

Era assim, de fato algumas coisas no mundo eram como pensamos ser, ainda que o mundo não girasse ao nosso redor. Era assim e, assim, ele se jogou no meio-fio da calçada, prendendo-me à sua existência de chá de hibisco com colheres de algodão doce.

– Ei, você é o cara da lanchonete, né?

– Parece que você se lembrou de mim.

Ele falou comigo daquele jeito suave, daquele jeito de quem se conhece há tempos, como se eu não fosse a pessoa que ele pode ter conhecido apenas uma ou duas vezes antes, mas ao invés de palavras ele contava sonhos, sonhos que me faziam perder-me entre pensamentos e passados de neblina que só pude esquecer.

– Como não lembrar? – Ele lambeu aqueles lábios dele e, por um segundo, pensei em fazer o mesmo, mas esse é um pensamento ambíguo, acabei por me perder nas luzes e emoções que surgiram dele. – Você parece menos nervoso, hoje.

– Impressão sua.

Sem me dar conta, acabei por contradizê-lo, acabei por contar-lhe que não, mesmo hoje eu ainda estava tão nervoso quanto estive ontem ou anteontem ou até mesmo o verão de dez anos atrás. Sem me dar conta, sorri sem jeito e tropecei sozinho em uma pedra inexistente ao tentar sentar-me ao lado dele. Ele riu, eu não vi graça nenhuma que não fosse ele, mas nada fiz além de encará-lo de soslaio.

– Deve ser. Você ainda é tão desajeitado.

Eu não sei se ouvi errado, não sei nem se ele de fato falou alguma coisa, pois meus pensamentos estavam a mil e eu, sentado ao lado de um objeto desconhecido em pleno acordar da noite e dormir do dia, não poderia estar mais tenso.

– O quê? – confuso, perguntei.

Ele riu, seus caninos tortos foram escondidos pela palma de sua mão, dedos esguios e com anéis de personalidade. Combinava com ele e seu tênis amarelo. Eu mal tive o vislumbre da aurora antes de ela desaparecer para sempre ou até que ele quisesse.

– Nada, eu só disse que você é bem desajeitado.

Quais são as probabilidades de encontrarmos uma pessoa aleatória, nem tão aleatória assim e ela, aleatoriamente, parar para conversar com você?

Ele era todo olhos de peixe-morto mergulhados em uma piscina de doçura hipócrita e essência terrosa no pulso, no pescoço e em todas as dobras de seus braços. Ele era todo cílios que se abaixam ao mesmo tempo em que o queixo se ergue e as costas ficam eretas em opressão. Eu nunca vi alguém daquele jeito, apesar de parecer alguém que já vi antes. Alguém para recordar e alguém que me recordava algo que já nem lembrava mais.

Inefável Onde histórias criam vida. Descubra agora