nove

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Aquele dia foi feito de ventos uivantes cortando meu rosto e levando a saia de uma mãe, com flores sorridentes no chão e céu azul de pigmentos reconfortantes que sorri à vida, parecia o primeiro dia de tantos outros, primeiro dia de verão, mesmo que fosse primavera. Era como o primeiro dia a ser esquecido e o primeiro a ser recordado.

Ainda eram palavras perdidas no limbo do cemitério de memórias esquecidas, soando como vultos sorrindo ao longe e gritos de assombrações berrantes ao encontrar a flor do renascimento e toda paz que foi sofrimento.

– O que devemos colocar, mãe?

– Coisas legais que vocês gostam – tinha dito a mãe de Yeonjun. 

– Não cabe uma moto aqui dentro, mãe. 

– Coisas pequenas, Yeon.

– Então, vou colocar o Binnie! 

– Querido, assim não. – Eu acho que ainda me recordava da risada límpida de uma mãe. – Você não pode colocar coisas vivas. Só palavras, fotos e brinquedos, tudo bem? Vídeos, cartinhas, essas coisas.

– As palavras não estão vivas igual as fotos, tia?

Ainda pensava se as palavras eram feitas para serem o que eram ou algo a mais, tão vívidas quanto as próprias fotografias e os reflexos de vida que delas escapavam. 

Era algo sobre a imersão de um mundo que já existiu ou ainda existia em outros paralelos, algo sobre a beleza de observar algo que já se foi, a nostalgia melancólica de querer mergulhar na eternidade do efêmero como era com as palavras manchadas em papel de escritas. Nada era para sempre além de palavras e fotografias jogados no esquecimento achado e no tesouro de histórias para imaginar.

– E quando vamos abrir isso, Yeonnie?

– Quando formos tão grandes quanto a Torre Eiffel.

– Eu acho que nunca, então. A Torre Eiffel é gigante.

– Aish, você tem razão. Então… quando formos grandes do tamanho dos nossos pais!

– Aos vinte?

– Aos vinte! 

– Você promete?

Aos vinte nós já não coexistíamos e eu não pude ouvir sussurros gritantes de promessas, jamais saberia se elas foram feitas e então desfeitas ou se nunca chegaram a existir de fato. Pude sorrir com uma lembrança recuperada, de alguma forma vespas rastejando sobre todas minhas veias, me causando agitação. 

Você se lembra, agora, de quando minha mãe trouxe a gente aqui?

Minha cabeça doeu o bastante para que eu me curvasse sobre mim mesmo, segurando-a entre minhas mãos em recordação de algo que eram apenas lapsos em um fundo transparente. Yeonjun segurou meu ombro, aproximando-se, mas não deixei que falasse mais nada.

– Eu acho que sim. Eu acho que aquele dia foi… o primeiro de todos os outros. É bom lembrar do esquecido. Me sinto, uh, mais leve. Eu realmente não me lembrava que havíamos enterrado uma cápsula do tempo aqui. Isso é… além do que eu esperava. 

– A ideia foi da sua mãe. 

– Sério? E você sabe o porquê ela não veio junto naquele dia?

– Naquele dia ela ficou fazendo tortas para o seu aniversário.

– Oh.

– Você estava fazendo dez anos. Eu não te dei um presente naquele ano. 

A estimulação visual que levava ao hipocampo era útil até certo ponto, porém já não me recordava de mais nada além daquilo que já foi lembrado, inclusive sobre épocas do ano. 

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