três

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Como qualquer outra pessoa, eu sempre tive sonhos. Pelo menos eu acho que sim. Sonhei em usar espadas numa dinastia qualquer, sonhei em ser príncipe e até mesmo em voar, mas também sonhei em abraçar meu amigo de infância, beijar meus pais e também sonhei em viajar pelo mundo. Quis sair de mim, deixar meu corpo e me tornar um nada. Sonhei até mesmo em morrer de morte bem morrida.

Eu quis ser uma árvore, um gavião e a presa que ele ameaça, mas nunca sonhei em tornar real algo que fosse além do que sou, às vezes, sonhar era mais divertido do que tornar real, em alguns casos, pois é o desejo sendo desejado e fica bem no plano mental.

Temo que a base dos meus sonhos, quando fora do inconsciente mental, seja a felicidade. No fim, talvez eu tenha perdido essa minha ambição por sonhos longínquos demais, como ser um príncipe ou explorador das nuvens, a maioria deles são inalcançáveis para pessoas comuns nascidas de pessoas comuns. O mundo é dos ricos, se não, ele é da sorte. E eu nunca tive riquezas ou resquícios de sorte.

Depois dos vinte, costumava pensar que meus sonhos seriam simples, como almoçar com a família ou beijar a vizinha bonita – coisas alcançáveis… até certo ponto, porque eu não tinha família e muito menos uma vizinha bonita. Como poderia ser feliz assim? Então me adaptei novamente e dificilmente funcionou. Adaptei meus novos sonhos para minha realidade, nunca fui ambicioso e nunca terei o poder da ressurreição, a fonte da juventude ou a poção da imortalidade. Nunca terei asas.

Era por isso que, atualmente, o meu sonho era ir ao cabeleireiro com Beomgyu. Talvez não faça sentido, porém se me deixava feliz, era uma realização. Se foi uma realização, não deixa de ter sido um sonho. Poucas coisas tinham esse efeito.

Beomgyu tinha cabelos longos e escuros, pesados como se estivessem molhados em chuva o tempo inteiro, passava dos ombros. Fazia dois anos que ele não cortava. Tudo nele cheirava a morango e frutas vermelhas, toda a sensação de estar cheirando a sapatos ou bonecas infantis. Ele era como a sensação de desabrochar os risos em uma cozinha de mãe com a presença da mãe e uma torta de maçã no forno.

– Você não trabalha mais, não?

Ele não sabia que eu estava sempre trabalhando em algo, mesmo que fosse nos jardins mentais e nas cordas do meu coração. Eu fracassava na maior parte do tempo.

– Eu te disse que fui pegar um atestado.

– Esqueci. Minha memória é pior que memória de peixe.

– Isso de que peixe tem memória ruim não é fake news?

– Sei lá!

– Eu acho que os peixes têm ótima memória e são mais inteligentes que você.

Apesar de ter uma moto, caminhadas matinais sempre foram muito agradáveis, tanto o fato de poder contemplar a humanidade, sua pressa e trânsito cedo da manhã, inspirar o ar poluído da cidade… quanto o fato de poder expulsar toda aquela toxicidade para fora de meus pulmões o quanto antes.

Eu curtia muito a natureza poluída da janela da minha casa.

Nós chegamos ao cabeleireiro. Na verdade, era mais como uma barbearia de baixa renda na calçada de uma cidade grande cheia de poluição visual. Entramos e o cheiro de gel e secador imediatamente inundou meus sentidos, tal como inspirar a água do mar, a sensação sendo incômoda no nariz.

Lá dentro era quente como uma bacia onde não há circulação alguma de vento. Eu me sentei, observando a decoração, o chão era preto e desgastado, as únicas três cadeiras eram pretas e desgastadas e todos os móveis eram de madeira velha e desgastada. De alguma forma, me senti no direito de julgar levemente, afinal fazia parte de mim e de todo ser pensante, mas me contive em calar minha mente a marretadas e tentar me distrair com outros pensamentos.

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