1-Dinheiro

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O cheiro a cerveja já se sentia desde o corredor, não havia um único dia em que aquele cheiro não impregnava naquele andar.

Apartamento número 61, Felix caminhava nessa direção, cansado, vinha carregado com a sua lancheira e casaco numa mão e na outra trazia uma saca com umas compras necessárias para a sobrevivência de uma semana.

Estava farto, cansado da urgência da contagem do dinheiro, o quanto ganhar, o quanto gastar e o nada que irá restar.

Por uma vez na vida tudo o que queria era passar um mês sem a constante preocupação de o dinheiro não restar, sem o medo de a meio do mês as suas refeições do dia se resumirem a uma e os banhos da semana a dois... só queria ter tudo controlado e aquela sensação que o mundo gira a sua volta de volta.

Pousou a saca no chão e remexendo as chaves no chaveiro com o nome da empresa onde trabalha "Lambe Botas", uma indústria onde são criadas botas e outros equipamentos para pesca, aquacultura... enfiou a chaves na fechadura.

-Boa tarde Félix! -Mel, a vizinha da frente do 62, felicitou.

-Boa tarde. -suspirou Felix, a sua mente estava cheia, tinha sido um dia cheio, demasiado até.

-Sempre podes ficar com a Lu e o Ben na sexta à noite? Eu pago-te mais por ser numa sexta...

-Não precisas de pagar mais... -errado!

Melanie é mãe de Lu, uma menina de 6 anos e Ben um rapaz de 10, os quais Félix toma conta de vez em quando e por insistência da mulher, ela paga-lhe, afinal como vizinha com estas paredes finas são poucos o que não sabem o que Felix não passa naquele apartamento.

-Tu sabes que eu faço questão. Fica então sexta às dezanoves horas. Obrigado Felix! -entrou no seu apartamento não dando uma brecha para o outro recusar ou arranjar uma desculpa.

No outro lado do corredor, Felix abandonou o assunto rapidamente, a sua mente continuava presa naquelas horas passadas, naquelas palavras e naquele cartão na sua carteira que ele não descobrira o porquê de não o ter atirado ao lixo.

Suspirou e entrou no apartamento sustendo a respiração, a primeira vista que teve foi a de roupa no chão do pequeno hall de entrada e duas garrafas vazias na curva.

Largou o casaco no cabide, as chaves de casa na mesinha e com os pés descalçou-se.

Não sabia onde estava, mas sentia o seu cheiro e a sua energia naquele ambiente, detestava-a com todas as suas forças, mesmo que em tempos tivesse amado este homem.

Pelo caminho pegou as roupas e as garrafas, fazendo caminho até à cozinha.

-Felix! -o homem berrou, parecia estar do outro lado do apartamento, na sala. -Temos correio! É do apartamento, luz e essas merdas... vê se resolves isso!

Nada mais do mesmo...

Largou as coisas na mesa de jantar já ferrugenta e desnivelada, pôs-se à procura das cartas, sem efeito perguntou ao outro.

-Onde estão? -falou alto para o outro ouvir.

-Em cima do frigorífico... acho eu. -a paragem da fala, para emborcar mais um gole de bebida nos milhares já dados só hoje.

Encaminhou-se para lá e em pontas de pés chegou à pilha de papéis demasiado grande para ser tudo só deste mês.

"Conta da luz-11/2022"

"Conta da luz-12/2022"

"Conta da água-12/2022"

"Renda do apartamento-11/2022"

"Renda do apartamento-12/2022"

Se a cepa já estava torta, então esta caiu quando a última carta foi rasgada pelas mãos suadas e trémulas do outro.

"Aviso de despejo"

Eram as letras vermelhas, gordas e sedentas que sobressaiam naquele papel, e sinceramente são as suficientes para tudo.

-Timóteo! -exaltou-se para a sala. -Como é que temos um aviso de despejo devido a 5 rendas em atraso?!

O outro estava deitado no sofá, garrafa na mão, olhos cravados na TV, pés descalços fora do sofá... um verdadeiro lord.

-Não lhe transferiste o dinheiro?

Infelizmente, o pagamento da renda era uma das poucas tarefas que não conseguia cobrir.

Trabalha na fábrica de madrugada e à tarde para ganhar um extra trabalha numa companhia de eventos em salões, servindo nesses eventos ou no bar à parte que há nesse mesmo edifício.

O banco está com balcão aberto de manhã e umas poucas horas da tarde, parando para almoço, por isso os horários não encaixam e ter que pedir um dia de férias todo os meses para tratar disso era um luxo ao qual ele não se podia dar.

Sem remédio melhor e ainda fiando um bocado no outro ser com qual partilha a casa, fez disso sua responsabilidade, uma escolha que Felix completamente se arrependia e se iria para sempre crucificar.

-Estás no gozo?! Essa gente quanto mais tem mais quer! Transferi-lhes cada cêntimo! Como podem mandar uma carta de despejo? -a sua atenção centra-se no assunto necessário, arrancou-lhe a carta das mãos. -Eu vou falar com eles...

Não acreditava nem numa palavra que saia daquela boca, tal como não deveria ter acreditado quando o outro lhe disse que podia ficar descansado que isso seria algo que se encarregava.

-Tu não vais fazer nada, Timóteo! Eu trato disto. -arrancou-lhe a carta da mão e saiu da sala, indo em direção ao quarto.

Remexeu a gaveta à procura das cadernetas e quando encontrou a tal, revistou por alto as datas e valores transferidos até encontrar um de data "29.10.22", transição "317$ (300€/1 662 R$), referência "K35183".

Agarrou noutra caderneta mais antiga e revistou-a à procura de uma transição que fizera ele próprio para pagar a renda.

Referência "K36176"

Timóteo transferira o dinheiro para outro sítio, talvez para zerar dívidas ou criar delas, não era importante o que importava era que as rendas de 5 meses não foram pagas e isso é uma pipa de massa, não acrescentando o facto de ainda haverem mais 3 contas novas em cima da mesa de jantar.

Só havia duas palavras na mente de Felix:

"Estou fudido"

Wrong Service-HyunlixOnde histórias criam vida. Descubra agora