MUDANÇAS E BEIJOS

79 6 4
                                    

Aquele beijo me despertou lembranças boas, há muito tempo guardadas, porém nunca esquecidas.

Quando éramos crianças, Felipe e eu costumávamos brincar que estávamos nos casando. Usávamos um lençol branco como véu, eu vestia a camisola de seda branca da minha mãe e calçava seus sapatos altos, enquanto ele usava uma gravata do meu pai. Mesmo que Felipe estivesse prometido para minha prima Victoria desde os 4 anos, quando sua mãe ficou viúva, nós sonhávamos juntos com o nosso próprio casamento. Imaginávamos o quão feliz seria, minha entrada na igreja, os convidados e os quitutes deliciosos... Eu passava noites a fio sonhando com como ele seria um marido maravilhoso e imaginando nossos filhos, o dia em que nos beijaríamos.

Nós éramos inseparáveis, explorando os campos, os estábulos e a biblioteca. Era uma amizade de infância, nunca questionada por nossos pais, afinal, ele pertencia a outra mulher. Para eles, éramos como irmãos.  Eu sentia inveja e ciúmes de minha prima, pois ela o teria ao seu lado, levaria ele de mim sem nenhum esforço, sem nunca ter olhado em seus olhos.

Mas eu nunca compartilhei meus sentimentos mais profundos com ele. Passei toda adolescência me sentindo tola e infantil por amá-lo, até que um dia nos estábulos... Eu tinha 18 anos e ele 20.

"Mel, venha aqui! - Ele me chamou enquanto descia de seu cavalo. Prendeu o animal em sua baia. Eu já havia feito o mesmo e me embrenhado entre os corredores de madeira, rindo. - Quero lhe confidenciar algo. - Ele disse com seriedade, despertando minha curiosidade."

"O que? - Eu surgi no meio dos cavalos, que relinchavam com o barulho que estávamos fazendo."

"Eu te peguei! - Ele gritou, me assustando, e começou a correr atrás de mim. Corri o mais rápido que pude, mas ele me encurralou nos fundos, onde ficava o depósito de ferramentas. Ríamos como crianças, até que ele se aproximou demais. Seus braços me cercaram, e eu me vi contra a parede."

"Por que fugiu de mim? - Ele perguntou, tentando parecer sério, mas não conseguia conter o riso."

"Não fugi. - Meu peito subia e descia, o meu sorriso havia sido substituído por uma expressão ansiosa. Eu nunca havia beijado um homem antes, e nem deveria, mas nossas bocas ficaram tão próximas. Não me pergunte quem tomou a iniciativa. Não me lembro. Só sei que, quando percebi, suas mãos já seguravam meu rosto delicadamente, e seus lábios macios encontraram os meus com paixão. Não foi um daqueles beijos inocentes que víamos nos convescotes. Foi intenso! Sua língua e seu corpo buscavam o meu, cada vez mais próximo, despertando sensações que eu nem sabia que existiam.

"Não podemos." - Ele se afastou, sentando-se no chão batido, parecia cansado.

"Por que?" - Eu perguntei inocentemente, sentando ao seu lado.

"Estou prometido a outra. E tu tens tua honra." - Ele respondeu, sua voz carregada de um pesar profundo.

"A ama?" - Perguntei triste.

Ele olhou para o chão por um momento, antes de finalmente encontrar meu olhar, que estava fixo nele, esperando uma resposta.

"Não, nunca amei. A vi tantas vezes quanto você, duas, três vezes talvez. Tu sabes! Quando ela vem, eles ficam hospedados em tua casa."

A proximidade entre nós aumentou e nossos lábios se encontraram mais uma vez, era impossível resistir.

"O que quero lhe falar é que seu pai vai proibi-la de me ver. Acham que estamos próximos demais, querem evitar..." - Ele explicou. Continuava com as mãos envolvendo meu rosto e minha cintura.

"Evitar o quê?" - Minha voz transmitia um misto de inocência e irritação.

"Isso." - E me beijou de novo. Depois levantou-se, parecia estar lutando contra seus próprios desejos.

"Não podem mandar em mim. Vou falar com eles." - Cruzei os braços irritada. Me levantei, indicando que estava disposta a voltar para a casa principal.

"Podem. Não diga nada, são seus pais. Só queria avisá-la. Caso não nos vejamos mais, pelo menos tenho seus beijos pra guardar na minha memória."

"Nunca mais repita isso. Vamos nos ver, sim." - Declarei, caminhando em sua direção e tomando seus lábios novamente. Ele correspondeu, suas mãos acariciando suavemente minhas costas por cima do vestido, criando um calor intenso entre nós.

"Precisa ir, vão sentir sua falta." - Concordei com ele com tristeza. Virei as costas e ele me chamou. - "Psiu, eu te amo.' - Eu sorri para ele, mordi os lábios, tímida, e voltei para casa.

Toquei seus lábios com os dedos, como se eu pudesse segurar comigo aquela sensação, a textura de sua boca. Seus beijos nunca saíram da minha memória, embora escondidos atrás de um um mar de ressentimentos e de promessas não cumpridas. Ele me despertou de meus devaneios.

- O que mudou? - Ele me perguntou. - Por que se deixou ser beijada depois de tantos anos? Por que resolveu confiar em minhas promessas de repente?

- Me senti tão sozinha naquele leito de hospital e você ficou ao meu lado o tempo todo. - Acariciei sua barba, curtindo a sensação de estar próxima dele mais uma vez. Ele ficou em silêncio, mas moveu seu rosto carinhosamente contra minha mão. - Por anos achei que não se importava comigo ou com Alex, que havia ficado duro e frio por causa da morte de Victoria. Ali percebi que não era verdade.

- Não fiquei assim pela morte de Victoria. Foi pela morte do seu sentimento por mim. Foi por olhar pra você e só ver tristeza e olhos secos de raiva e ressentimentos. Por não ter mais o seu amor e seu olhar de admiração.

- Meu sentimento nunca morreu, Felipe. Nunca! - Ele acariciou meu rosto e me deu mais um beijo doce, mas me afastei. Não era o suficiente. - E Alex? Como consegue ser indiferente a ele?

- Não sou generoso e paciente como você. Eu olho pra ele e lembro do que poderia ter sido. Parece que ele está ocupando um lugar que não é dele.

- Não diga isso, por favor. Ele é seu filho. É um menino doce e amoroso. Não tem culpa da nossa dor. - Mais uma vez senti uma tristeza profunda por Alex.

- Eu sei e sinto muita culpa por não conseguir me aproximar dele. - Ele desviou o seu olhar do meu, virando o rosto.

- Felipe? - Eu chamei e ele fungou baixinho. Estava chorando. Limpou os olhos repentinamente.

- Me ajuda? A me aproximar dele? Não quero ser mais um pai horrível.

- Claro que sim. Você não é um pai horrível. - Ele riu, sua risada tinha um som irônico.

- Duvido que ele vai me aceitar em sua vidinha tão fácil assim.

- É tudo que ele mais quer. Tenho certeza! - Eu falei animada pela atitude dele.

- Não sei, devem ter tantas coisas que ele quer nesse momento.

Eu não entendi onde ele queria chegar, mas me calei. Eram muitas emoções para serem vividas em um coche.

LAÇOS INVISÍVEISOnde histórias criam vida. Descubra agora