Afogamento

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• Pov Ucker •

Acordei com uma sensação diferente. Sem pesadelos, sem o suor, a tremedeira, o vazio... Um sentimento novo surgiu dentro de mim, como se finalmente, depois de tanto me afogar em minhas mágoas, eu houvesse encontrado um refúgio. Por noites e mais noites de bebedeira, perdido, sem a menor esperança de que algo fosse mudar, a ressaca do dia seguinte era certeira e a dor de cabeça era meu despertador, fazendo alarde logo pela manhã e me lembrando do quão ruim estava a minha vida. Mas dessa vez não. Sorri ao me lembrar da noite passada. Ou melhor, das últimas horas, considerando que não dormimos muito... Ao me lembrar dos lábios dela, do perfume, sua pele macia, seus cabelos jogados sob meu peito enquanto a abraçava, seu olhar profundo a me encarar, sua respiração ofegante... Nada mais importava. Eu a tinha outra vez em meus braços. Ela me fez sentir um homem, como não me sentia há tempos. Despertou em mim os resquícios de felicidade que eu nem sabia se ainda era capaz de alcançar e a paixão destruidora que eu sentia por ela. E como ela me destruiu... No sentido positivo da palavra. Sentir seu corpo colado ao meu, o arrepio em sua pele em resposta aos meus toques... Era extasiante. Eu não desejava mais nada além de ser tudo pra ela, de estar inteiro por ela. E queria que ela fosse minha outra vez, mas agora, do jeito certo.

Virei-me estendendo o braço para alcançá-la, mas meus dedos escorregaram pela seda dos lençóis. Ela já havia se levantado.
E eu nem sequer notei. Faz mais de um ano que meus ataques noturnos me impedem de apagar assim, exceto quando o álcool se apossa dos meus sentidos. O mínimo farfalhar dos galhos era suficiente para que eu acordasse e perdesse o resto da noite de sono. Mas fui tomado pelo cansaço do sexo e me entorpeci com seu cheiro, a sensação de tê-la por perto...
Levantei-me e vesti a calça moletom que estava jogada no chão. Abri a porta do quarto e encarei a cozinha. Estava vazia.

Ucker: Candy?

A mesa de jantar estava intacta, como a havia deixado ontem. Andei até a sala. O sofá estava um pouco bagunçado. A gaveta do raque da TV estava aberta e meu carregador estava conectado à tomada logo abaixo do painel. Meu álbum de fotos estava jogado no tapete felpudo, embaixo da mesa de centro, aberto na última página. Só então comecei a juntar as peças. Ela viu minhas fotos com a Sarah... merda, merda, merda! Não era pra ela descobrir assim. Juntei as fotos e guardei-as novamente na gaveta.

Ucker: Dul!

Chamei novamente, sem resposta. Fui até a varanda. Nada. As roupas dela não estavam mais na secadora. Enterrei as mãos em meu cabelo e senti meu coração acelerar. Voltei para sala e só então avistei, de relance, a enorme caixa de papelão largada no chão em frente a porta de entrada. Fui até ela e do outro lado pude ver minha camisa embolada no chão, próxima ao balcão. A camisa que eu a havia emprestado. Voltei a atenção para a caixa. Endereçada a Sarah Ruíz Uckermann. Porra. Ela deve ter recebido. Porra!
Andei nervoso de um lado pro outro a procura do meu celular. O encontrei em cima do balcão. Liguei o visor. Eram 14:37. Desbloqueei a tela e liguei pra ela. Caixa postal.
Tentei outra vez.
Por favor, me atende. Por favor... Dessa vez a chamada não durou muito, direto pra caixa postal. Ela estava recusando minhas ligações. Deixei um recado.

Call post./ON

Ucker: Dul, por favor, me escuta. Não é o que você está pensando, me deixa explicar, por favor?! Onde você está? Deixe-me vê-la, eu posso esclarecer tudo. Por tudo o que tivemos e que ainda podemos ter, eu te peço, me liga de volta!

Call post./OFF

Esperei por 5 minutos e tentei outra vez. Direto na caixa. Que droga! Liguei pro Cristian. Ele também não atendia. Corri pro banheiro, tomei um banho rápido, vesti uma calça preta e uma camisa azul gasta que achei no guarda roupa. Calcei o mesmo tênis de ontem, peguei as chaves, o celular, a carteira e fui pro elevador. Os botões ainda desativados. Porra. Quanto mais pressa eu tinha, mais me enrolava. Desci os lances de escadas e fui até a recepção. Me dirigi ao recepcionista que estava organizando as chaves de acesso atrás do balcão.

Ucker: Oi, sabe me dizer se passou uma mulher de cabelos castanhos, meio acobreados por aqui agora?
Recepcionista: Sinto muito, senhor, temos muitas clientes com essa descrição, poderia ser mais específico?
Ucker: Não sei, salto preto, calça jeans clara, blusa preta talvez, eu não me lembro bem...
Recepcionista: Ah, sim. Uma senhora com essa aparência passou aqui mais cedo, apressada e carregando uma bolsa e um celular em mãos. Ela parou na entrada e me parecia perdida, perguntei se precisava de ajuda ou que eu chamasse um táxi, mas ela me dispensou com um aceno de cabeça e saiu.
Ucker: Tem muito tempo?
Recepcionista: Algumas horas.
Ucker: Merda... Obrigado!

Passei pelas portas do Hall de entrada, entrei no carro e saí sem rumo do estacionamento. Ela podia estar em qualquer lugar da cidade. Ou poderia ter voltado pra casa, eu não sei... Rodei o perímetro inteiro, olhei nos estabelecimentos, procurei-a por toda parte. Nem sinal dela. Continuei ligando pro seu celular pelo painel de controle digital do carro. Caixa de mensagens. Em todas as chamadas. Eu caia direto na droga da caixa de mensagens.
Parei o carro num acostamento e soquei o volante. Me culpei por não ter acordado antes, por não ter dito toda a verdade a ela. Se ao menos tivéssemos tido tempo pra isso. Ontem no jantar se eu tivesse dito, se eu... Porra!
Senti o suor escorrer em meu rosto e me joguei no banco, reclinando-o. Olhei para o teto e fiquei imaginando onde ela estaria agora. Como poderia estar se sentindo confusa, usada... Como se não bastasse o sofrimento que já a havia feito passar por causa da minha covardia, da minha imaturidade... Eu não fui o homem que ela precisava que eu fosse naquela época e nem sou esse homem agora. Mas eu queria tanto essa chance, só mais essa, de consertar tudo... Sei que ela tem todos os motivos pra desconfiar de mim. Minhas promessas vazias, a forma que a deixei, esse reencontro com um bêbado sem noção que detonou o carro dela... Mas ontem eu vi em seus olhos o quanto ela queria confiar em mim de novo, o quanto ela queria que eu fosse seguro para se deixar entregar... Restava um pouco de nós ali, eu sei disso. Respirei fundo e liguei o carro.

Voltei para o prédio. Precisava de clareza pra pensar no que iria fazer a partir de agora. Parei o carro na mesma vaga de antes, subi correndo as escadas e abri a porta. Então a encarei ali, ainda no meio da sala, no meio do caminho. A caixa. Sarah... Paralisei. Eu estava tão desesperado para achar a Dul, que nem me dei conta do que significava a presença daquilo ali. Eu não fazia ideia do conteúdo daquela caixa e não sei se queria abrir... A Sarah tinha mania de fazer compras com datas programadas para entrega. Era como se estivesse me enviando uma parte dela. Depois de tanto tempo...
Sentei-me no chão ao lado da caixa, sufocado pelos meus pensamentos. Preenchido pela culpa, pelo medo, pelo arrependimento...
Com calma tirei os lacres da tampa e a abri. Havia algo envolto por camadas de plástico bolha, as quais eu rasguei sem muito esforço. Engoli em seco. Um nó formou-se em minha garganta e a dor dilacerante invadiu meu peito, outra vez. Como se um botão explosivo tivesse sido acionado dentro de mim e tudo fosse pelos ares. As lágrimas pressionavam minhas pálpebras e não consegui impedir que despencassem em peso pelo meu rosto. Abracei a caixa e chorei como criança, do mesmo modo que havia chorado no dia em que recebi o laudo da perícia. A mesma faca, o mesmo golpe. Era um carrinho de bebê. O carrinho do nosso bebê... Minha respiração começou a falhar e eu senti como se me faltasse ar. Me afastei da caixa e me arrastei até a coluna de mármore do balcão. Me escorei nela e abri os braços, colocando minhas mãos abertas sob a pedra gelada. Puxei todo o ar que pude naquele momento. Eu simplesmente sentia como se estivesse morrendo. Só de lembrar da Sarah daquele jeito, do acidente, do que restara dela, das páginas escritas em seu caderno, da polícia fechando o local, o resultado dos exames de análise... nosso bebê... A família que poderíamos ter sido e nunca fomos, por minha culpa, pra variar. No mesmo dia em que perdi minha esposa, descobri que iria ser pai e logo em seguida perdi meu filho. E era tudo minha culpa. Eu poderia ter evitado a discussão, poderia ter sido um bom marido, pelo menos por um dia e impedido que ela saísse alterada de casa aquela noite. Mas me dei conta disso tarde demais... tarde demais...
Não consigo fazer isso.
Levantei-me com muito esforço, me apoiei nas cadeiras da mesa de jantar e fui até a sala. Peguei o Bourbon que havia em cima da mesa de centro e virei a garrafa. Joguei-me no sofá e continuei a beber enquanto ainda tentava respirar, encarando o teto. As lágrimas ainda quentes sob meu rosto, minhas emoções tomadas por uma mistura de revolta e tristeza. Não queria me embebedar de novo, juro, não queria... Mas não conseguia lidar com aquilo. Eu precisava de um anestésico, precisava me desligar. Iria ficar tudo bem. Eu apagaria ali mesmo no sofá e não incomodaria ninguém com isso. Sem alardes, sem escândalos. Precisava silenciar minha mente. Virei a garrafa outra vez. Que se foda. De qualquer forma eu iria mesmo acabar me afogando de novo...

CONTINUA...

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