Alta

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• Pov Ucker •

Acordei em um leito de hospital com um barulho alto vindo do lado de fora do quarto. Minha visão estava embaçada e a claridade vinda da janela era sensível demais aos meus olhos. Haviam escalpes em cada uma das minhas mãos e tubos conectados a bolsas de soro penduradas em suportes. Minha pele ardia por baixo das fitas que os sustentavam e dava pra ver os hematomas causados pelas agulhas em pontos diferentes, como se tivesse sido furado mais de uma vez. Me esforcei para abrir um pouco mais os olhos e virei a cabeça para o lado. Cristian estava sentado em uma poltrona à minha esquerda, com uma revista em mãos.

Ucker: Cris? O que aconteceu?
Cristian: Ah, até que enfim. Você aconteceu, Ucker, outra vez. Te encontrei desmaiado no seu apartamento ontem a tarde. Te arrastei com toda força que tive pelas escadas porque a porra do elevador não funcionava, te botei no banco de trás do carro e te trouxe para o hospital. Coma alcoólico. Quase que você não escapa dessa vez.
Ucker: Ontem a tarde? Fiquei desacordado todo esse tempo?
Cristian: Sim.
Ucker: Você chegou a falar com...
Cristian: Fique tranquilo, não deu tempo de chamar seu pai. Eu estava tão preocupado e tão cansado que dispensei os xingamentos histéricos do Victor enquanto não recebia um relatório médico preciso do seu quadro de saúde. Quando o perigo passou e me disseram que iria ficar bem, que só precisava ser medicado e descansar um pouco, eu esperei que acordasse pra que você pudesse receber a fúria dele pessoalmente.
Ucker: Não envolva meu pai nisso. Foi um deslize, a caixa, a Sarah...
Cristian: Não ponha a culpa nela por seus erros, Ucker. Respeite a memória da sua esposa e assuma seus atos. Eu vi a caixa aberta no chão da sala. Dei uma geral no seu apartamento, tive medo de que estivesse usando drogas, mas os médicos descartaram isso no seu exame toxicológico. Ainda sim, você não devia ter pirado e se embebedado de novo.
Ucker: Tem razão...
Cristian: Já marquei um horário numa clínica de reabilitação. Você precisa ser internado.
Ucker: Não, cara, qual é...
Cristian: Chega Ucker. "Qual é" digo eu. Você mais do que ninguém sabe que precisa disso. O que vai fazer quando seu prazo acabar e Victor souber que você continua se afundando em bebida? Eu não conheço o luto que você está vivendo, mas sei que ele não vai passar só porque você quer. Vai doer, vai piorar e você vai extrapolar novamente, sob a mesma justificativa. Você quer silenciar sua dor e não tratá-la. E isso só piora tudo. O álcool é a desculpa que você usa para fugir do sofrimento. Você não quer encará-lo de frente, mesmo sabendo que precisa disso.

O silêncio pairou. Sabia que ele estava certo. Sabia que estava cansado de cuidar de mim como um pai que lida exaustivamente com as confusões em que seu filho rebelde o envolve. E ele não merece isso. Me sinto um lixo por fazer isso com meu melhor amigo. Eu queria me desculpar, queria dizer que iria me esforçar, mas nada saía da minha boca. Não iria adiantar. Eu estava cansado e minha cabeça doía demais. O barulho vindo do corredor também estava me enlouquecendo, os sons ecoavam em minha mente.

Ucker: Que barulho é esse?
Cristian: Uma garotinha curou-se de um câncer e a equipe do hospital fez uma festa para se despedir dela. Irônico né? De um lado uma criança que lutou bravamente pela vida e do outro um homem de 30 que está acabando com a sua.
Ucker: Cris...
Crisrian: Vou ver se o médico já está chegando pra fazer a ronda. Você deve receber alta ainda hoje.

Ele colocou a revista que estava lendo na poltrona e deixou o quarto. Merda, merda, merda. Eu não sabia que tinha exagerado tanto. Eu me lembro de ter pego uma garrafa de bourbon e deitado pra beber no sofá, mas não sabia que chegaria a isso. Que porra eu tô fazendo da minha vida? E a Dul... Eu sequer tive a chance de me explicar, de conversar com ela.
As palavras de Cristian mexeram comigo. Não preciso ser internado, ainda estou no controle. E o Cris sabe disso. Está exagerando porque está chateado e não tiro sua razão. Eu realmente estou ferrando com tudo. Mas há outras alternativas. Posso fazer terapia, posso sair da cidade por um tempo... Uma mudança de rotina pode me ajudar. Tenho mil opções que podem me salvar da reabilitação.
Já estive lá. Na porta, do lado de fora. Ouvi relatos, pessoas chorando por traumas que faziam os meus parecerem insignificantes. Entendo que esse lance ajuda muita gente. Mais um mês, mais uma ficha e sentem-se orgulhosos de si mesmos. No AA também tive um pouco desse ritual, mas de um jeito mais leve. Mas não funcionaria assim comigo, sei disso. Por isso fui embora sem pretensões de voltar.
Fechei os olhos para tentar dormir um pouco.
Alguns minutos depois, a porta se abriu. Dois homens de jaleco acompanhados por Cristian se aproximaram de mim. Um deles segurava uma prancheta nas mãos, devia ser o residente. O outro cruzou os braços e escorou na parede aguardando alguma coisa.

Nichols: Bom dia, senhor Uckerman. Me chamo Nichols, sou o médico residente, estou fazendo a ronda da manhã com o Dr. Shermann. Ele te atendeu, analisou seus exames e prescreveu seu tratamento. O nível de álcool na sua corrente sanguínea estava muito acima dos níveis aceitáveis e seu fígado sobrecarregou-se no processo de desintoxicação. Pouco depois de chegar, você apresentou convulsões e arritmias, mas monitoramos sua frequência cardíaca e entramos com medicamentos intravenosos para estabilizá-lo. Aplicamos soro para hitdratá-lo, fizemos reposição de glicose, eletrólitos e vitamina B1. Felizmente, já está fora de perigo.
Dr. Shermann: Você escapou por pouco. Ainda bem que o seu amigo o trouxe a tempo, se tivesse convulsionado em casa, suas funções cerebrais seriam comprometidas. Vai precisar tomar alguns medicamentos para recuperar a função hepática por um tempo. Nichols vai entregar sua receita e vou emitir sua alta. Uma enfermeira virá para desligar os aparelhos e retirar os acessos. Alguma dúvida?
Ucker: Não, nenhuma. Obrigado!
Dr. Shermann: Tenha um bom dia e procure descansar. Nada de álcool por no mínimo 3 meses.
Ucker: Pode deixar.

O residente entregou uma receita para Cristian e ele e o Dr. Shermann saíram da sala. Cristian sentou-se e ficamos em silêncio até a enfermeira retirar os acessos.
Assim que levantei, meu corpo todo doía e senti uma forte pontada na cabeça. Mesmo depois de um coquetel de remédios ainda teria que lidar com a ressaca...
Cristian levantou-se e me entregou uma camisa social preta, gravata, terno e um sapato social.

Cristian: Vista isso, passaremos na empresa. Tenho que resolver umas coisas por lá e se seu pai estiver, já falamos com ele. Você vai pra clínica amanhã.
Ucker: Não, Cris. Ainda não conversamos sobre isso, eu não tomei essa decisão. Tenho outras alternativas. Só me escuta...
Cristian: Conversamos no carro, Ucker. Se veste, tô te esperando.

Entrei no banheiro do quarto à direita e tomei um banho rápido. Vesti minha roupa, tentei deixar o cabelo no lugar e coloquei o sapato. Estava com a mão na maçaneta da porta, prestes a sair quando ouvi aquela voz inconfundível. Dulce Maria. Era ela. Mas o que ela estaria fazendo aqui?
Meu coração acelerou e quis sair, quis vê-la, tomá-la nos braços imediatamente e dizer que tudo não passou de um mal entendido. Mas outra voz feminina se distinguia no diálogo. Me prontifiquei com o ouvido na porta e escutei toda a conversa.
Estava em choque. A garotinha do quarto ao lado. Ela queria adotá-la. Falava dela com um carinho, um entusiasmo... Podia sentir que a amava. Mas queriam tirá-la dela.
Eu não fazia ideia de nada disso.
Ela já estava em um momento complicado e eu só apareci e piorei tudo.
Quando senti sua voz pesar e alterar-se reconheci os traços daquela raiva. Seu mundo caiu ali. Assim como o meu quando descobri sobre a Sarah. Estavam tirando dela alguém que ela amava. Decidi que isso não ficaria assim. Eu tinha que fazer alguma coisa. Por ela. Só dessa vez.

Abri a porta e fui em sua direção. Envolvi meus braços na sua cintura e ela me encarou de relapso, confusa. Apertei de leve sua cintura numa tentativa de tranquilizá-la e pedir que me deixasse fazer isso.

Ucker: Querida, desculpe a demora, problemas na empresa. Você está bem?

Não sabia direito o que estava fazendo. Mas meu plano era convencer essa mulher de que a melhor opção pra essa garotinha era a Dul e se ela achava que para isso, precisava de um parceiro ao seu lado e de estabilidade financeira, eu seria isso para ela. Nem que fosse por alguns minutos.
Senti seu corpo amolecendo em meu braço. Sua respiração estava acelerada. Seus olhos estavam sem foco. Ela me encarava e encarava a mulher a sua frente como se estivesse vendo coisas.

Ucker: Querida, você quer uma água? Precisa se sentar?
Dul: O quê, eu...
Verônica: Meu nome é Verônica. E você seria...?
Ucker: Cristopher Uckermann. Prazer! Sou o noivo dela. - Disse estendendo a mão para cumprimentá-la.

Dito isso ela apagou. Seus olhos fecharam-se completamente e seu corpo deixou-se cair em cima de mim. Sustentei-a de pé, peguei-a no colo desesperado e gritei uma enfermeira que passava pelo corredor.

Ucker: Ajuda, enfermeira!!

Uma equipe veio me auxiliar e levei-a para o quarto em que eu estava.

Continua...

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