Capítulo 27 - A Teoria da Abstinência

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No capítulo precedente consideramos a mais-valia, resp.(1*) o sobreproduto, apenas como fundo individual de consumo do capitalista; neste capítulo, até aqui, apenas como um fundo de acumulação. Todavia, ele não é apenas nem só um nem só o outro, mas ambos simultaneamente. Uma parte da mais-valia é consumida pelo capitalista como revenue(2*), uma outra parte é aplicada ou acumulada como capital.

Dada uma massa de mais-valia, uma destas partes será tanto maior quanto mais pequena for a outra. Tomando-se todas as outras circunstâncias como mantendo-se iguais, a proporção em que esta divisão se efectua determina a magnitude da acumulação. Porém, quem procede a esta divisão é o proprietário da mais-valia, o capitalista. Ela é, portanto, acto de vontade seu. Da parte do tributo por ele sacado e que ele acumula diz-se que ele a poupa, porque ele não a come toda, i. é, porque ele exerce a sua função enquanto capitalista, a saber, a função de se enriquecer.

Só na medida em que o capitalista é capital personificado ele tem um valor histórico e aquele direito histórico de existência que, como diz o espirituoso Lichnowski, não tem data nenhuma[N167]. Só nesta medida a sua necessidade transitória própria se encontra metida na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Mas nessa mesma medida não são também valor de uso e fruição o seu motivo motor, mas valor de troca e a sua multiplicação. Como fanático da valorização do valor ele coage sem escrúpulos a humanidade à produção pela produção, portanto, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições de produção materiais que só elas podem formar a base real de uma forma superior de sociedade cujo princípio fundamental é o desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo. Só como personificação do capital o capitalista é respeitável. Como tal, ele partilha com o entesourador o impulso absoluto de enriquecimento. Porém, o que neste aparece como mania individual, é no capitalista efeito do mecanismo social no qual ele é apenas uma roda motriz. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista toma uma necessidade uma subida permanente do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual as leis imanentes do modo de produção capitalista como leis coercivas exteriores. Ela coage-o a estender permanentemente o seu capital para o conservar, e só o pode estender por intermédio de acumulação progressiva.

Portanto, na medida em que o que ele faz ou deixa de fazer é apenas função do capital nele dotado de vontade e consciência, o seu consumo privado próprio afigura-se-lhe como um roubo à acumulação do seu capital, do mesmo modo que na contabilidade italiana os gastos privados figuram na [coluna] do deve do capitalista face ao capital. A acumulação é conquista do mundo da riqueza social. Com a massa do material humano explorado, ela estende simultaneamente a dominação directa e indirecta do capitalista(3*).

Mas o pecado original opera em todo o lado(4*). Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, da acumulação e da riqueza, o capitalista cessa de ser mera encarnação do capital. Ele sente uma «comoção humana»[N168] pelo seu próprio Adão(5*) e cultiva-se a ponto de se rir do fanatismo pela ascese como preconceito do entesourador à moda antiga. Enquanto o capitalista clássico estigmatiza o consumo individual como pecado contra a sua função e como «abstenção» da acumulação, o capitalista modernizado está em condições de conceber a acumulação como «renúncia» ao seu impulso de prazer. «Ah, duas almas habitam no seu peito, uma quer da outra separar-se!»[N169]

Nos começos históricos de modo de produção capitalista — e cada novo-rico capitalista percorre este estádio histórico individualmente — predominam o impulso de enriquecimento e a avareza como paixões absolutas. Mas o progresso da produção capitalista não cria só um mundo de fruições. Ele abre com a especulação e o sistema de crédito mil fontes de enriquecimento súbito. Num certo nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é simultaneamente exibição da riqueza e, portanto, meio de crédito, tor- na-se uma necessidade de negócio do «infeliz» capitalista. O luxo entra nos custos de representação do capital. Não obstante, o capitalista não se enriquece, como o entesourador, na proporção do seu trabalho pessoal e do seu não-consumo pessoal, mas na medida em que ele suga força de trabalho alheia e impõe ao operário a renúncia a todas as fruições da vida. Embora, portanto, o esbanjamento do capitalista nunca possua o carácter de bona fide(6*) do esbanjamento do senhor feudal estróina, mas antes do segundo plano espreite sempre a mais sórdida avareza e o cálculo mais minucioso, o seu esbanjamento cresce apesar de tudo com a sua acumulação sem que um precise de prejudicar a outra. Com isto desenvolve-se simultaneamente no alto peito do indivíduo-capital um conflito fáustico entre impulso de acumulação e impulso de fruição.

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