Su Ning acordou, sentindo-se gelado por dentro apesar da coberta quente que o cobria. O lado onde Qiang Yong estava deitado estava frio e vazio e por alguma razão isso deprimiu ainda mais seu coração. Ele sentou-se na cama, só para sentir as gotas pesadas caírem de seu olhos sobre as mãos que agarravam firmemente o cobertor.
Então foi isso que aconteceu em seu passado... ele sentiu como se estivesse sufocando, mesmo entre as paredes largas daquele quarto espaçoso e decidiu sair para caminhar sob o ar noturno. Su Ning saiu apenas com o roupão interno fino e descalço, para andar sobre a grama do jardim. Estava frio como naquela noite, provavelmente também nevaria.
O menino se agachou, arrancando algumas ervas daninhas que tinha visto durante o dia no jardim. Ele deixou as lágrimas correrem pela face, queimando quentes contra a pele gelada. As memórias se sucederam uma após a outra, como se fossem perfurar sua cabeça. Ele massageou os pontos Shuai Gu [1] nas têmporas para aliviar a pressão. De vez em quando ele deixava escapar soluços sufocados. Era muito tarde e ele não queria acordar ninguém.
"Dr. Su?" Uma voz o chamou por trás. Ele virou rosto para ver quem era, reconhecendo a figura de Ren Shyu.
"A-Shyu, você ainda está acordado?" Ele perguntou com a voz fraca.
"Dr. Su... digo, Su Ning, você está chorando? Você se lembrou de algo?" Ele de repente se deu conta disso e correu para junto do outro, passando a mão sobre seu ombro.Foi um gesto tão espontâneo e natural, que nem mesmo Ren Shyu esperava isso de si mesmo. Mas ele viu aquela pessoa de uma forma tão lamentável que seu coração foi tomado de compaixão. Su Ning assentiu cabisbaixo.
"Meu pai e meus irmãos morreram pelo fungo negro. Quando o arroz contaminado era colocado próximo a outros grãos e frutas, o fungo também passou a contaminá-los. Naquele semana um carregamento de alimentos chegou a vila. Mas eles estavam próximos a sacos de arroz que seriam queimados. Ou talvez algo que eles comeram por fora, como as jujubas..." Ele se silenciou.
Ren Shyu entendia agora. Perder parentes tão cedo... ele não chegou a conhecer o pai, mas sentia falta mesmo assim. Ren Shyu o abraçou com força, deixando que ele continuasse a chorar baixinho sob seu peito aquecido.
"E você se lembrou do que aconteceu depois?"
"Muitas pessoas morreram... E antes que pudéssemos fazer algo, o exército imperial veio e incendiou tudo. Um grupo conseguiu fugir por uma das trilhas das montanhas..."Su Xue tinha esperança de conseguir chegar até outra vila com o filho sobrevivente. A sorte dela e de Su Ning era que ela vivia ocupada, esquecendo de comer e pulando as refeições, enquanto que o filho tinha um fogo do estômago fraco e era inapetente, comendo por obrigação somente as refeições principais a contragosto.
Eles partiram com um pequeno grupo, levando consigo somente o necessário em uma carroça. Levaria pelo menos dois dias para cruzar o outro lado da montanha e nevava forte. Su Ning ainda estava entorpecido por ter presenciado a morte de seus familiares e suas pernas haviam sido atingidas por cãibras por ter ficado tanto tempo exposto ao frio. Sua mãe acariciava-lhes o cabelo, sentindo a culpa e pesar por não ter dado prioridade a sua família.
Esse era um fardo pesado demais para uma criança carregar. Como ela pode ser tão cega?
Na carroça, ela abraçava o filho, tentando mantê-lo aquecido e o apoiando, cantando baixo em seu ouvido.
"Nas montanhas azuladas, nesse lugar nos separamos. Minhas saudades são como o rio, que seguem para o mar sem descanso."Su Ning não sentia e nem falava nada, porém a melodia fazia as torrentes de lágrimas sairem sem esforço e ele deslizava entre os dedos uma pedra preta que sua mãe carregava pendurada no pescoço. Ela tinha riscos brancos que saiam do seu interior como uma flor, era um pingente que sua mãe sempre usava e a pedra era sempre fria ao toque. Su Xue a achava uma arte única feita pela natureza.
Os sobreviventes na carroça também não disseram nada. As crianças por serem mais fracas foram as primeiras a sucumbirem e Su Ning foi o único que restou. Com a neve caindo pesada, nem o som das rodas rangendo sobre o chão fofo e branco era audível. Entretanto, como um trovão que caia dos céus, como uma tribulação celestial, eles ouviram um grande estrondo.
O coração de cada um pulou uma batida. Da parte alta da montanha, uma avalanche de neve estava a descer, tão rápido e voraz como a desgraça que consumiu sua terra natal. Su Xue sentiu o sangue inteiro de seu corpo gelar, eles não conseguiram escapar dessa vez.
Ela se lembrou que havia alguns yao na carroça, talvez eles pudessem se salvar. Uma figura se levantou, pronta para partir na frente e Su Xue a agarrou pelo ombro."Liu Xuang! Por favor, leve meu filho com você!" Ela lhe entregou o filho com lágrimas aos olhos. E é um último esforço, arrancou a corrente de seu pescoço e colocou na mão do filho. A yao a encarou por um instante, gravando na memória o rosto desesperado daquela mãe e sem hesitar saltou da carroça com a criança nos braços abrindo bem suas grandes asas, bem no momento em que esta era atingida pela monte de neve, sendo arrastada para o fundo do abismo.
Mesmo em estado de choque, Su Ning não conseguiu segurar seu próprio grito, chamando pela mãe. O som ecoou pela montanha, fazendo-a tremer por inteiro. A criança estendeu os braços impotentes e chorou amargamente no colo da yao. Liu Xuang o abraçava com força, mesmo o garoto estando imóvel em seus braços, chorando amargurado.
"Me perdoe, Xiao Ning. Eu não tinha como salvá-la, eu só consigo carregar você..." Liu Xuang lamentou. Ela era um yao fraca, pequena e inútil. Mas Su Xue a atendeu uma vez de graça, ela nunca esqueceria isso. Salvar seu filho era o mínimo que ela poderia fazer. Ela pousou mais para frente do deslizamento e tentou consolar o menino.
Su Ning não tinha mais nada. Nem lar, nem família, tudo destruído. Porque ele tinha que continuar a viver?
"Su Ning, foi um desejo de sua mãe. Viva por ela! Era o que ela queria! Senão, ela não teria me dado você naquela hora!" Liu Xuang o sacudiu de leve. "Me prometa que fará isso."
O garoto não respondeu de imediato, abraçando os joelhos tristemente.Depois assentiu devagar com a cabeça. Ele não queira ser um peso para ninguém. Sem alimento, dinheiro ou abrigo, os dois foram obrigados a atravessar sozinhos a montanha por dois dia. Chegaram a vila próxima semi congelados e ainda descobriram que os yao eram tratados com desconfiança no lugar. Su Ning se arriscou sozinho a pedir alimento aos moradores hostis.
Ele não poderia dizer que vinha de uma vila "contaminada", então ele apenas disse que estavam viajando e foram pegos por uma avalanche. Com alguma dificuldade ele conseguiu algumas batatas doces e nabos velhos, e improvisaram um abrigo em uma caverna nos limites da vila. Nenhum dos dois falou nada enquanto Su Ning preparava um ensopado com os nabos e assava as batatas.
"Xiao Ning, o que você pretende fazer agora? Tem algum lugar para onde você queira ir?" Liu Xuang perguntou enquanto devorava sua tigela de sopa, a primeira refeição quente em dias. Durante a travessia, ela só pode comer raízes comestíveis que Su Ning coletou sob a neve. O menino mastigava sua batata doce sem apetite, acariciando o pingente da mãe entre seus dedos.
"Eu... eu vou estudar medicina como a minha mãe." Ele respondeu com uma repentina resolução. Ele sabia qual era Seita médica onde sua mãe estudou, então era para lá que ele iria.
Nota da Autora:
Tem memórias que da vontade de arrancar como ervas daninhas, com raiz e tudo.
[1] Shuai Gu: ponto de acupuntura localizado acima da orelha, é muito indicado como ponto local para as dores de cabeça, mas também é indicado para tontura, visão turva, sensação de peso na cabeça, desvio do olho e da boca, vômito, inabilidade para comer, dano provocado pelo álcool (ouviu, colegas chegados em vinho de arroz? 😏).

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O Imperador Yao e Seu Médico Humano
RomanceO Imperador Dragão Qiang Yong conseguiu após anos de uma guerra incessante estabelecer a paz entre humanos e yao. Entretanto, ele ainda nutria um certo ódio por humanos. Entretanto quando a Imperatriz Viúva adoece subitamente e nenhum de seus médic...