Na sociedade terrena sempre existiram classes sociais. As pessoas sempre viveram segregadas, cada cultura ao seu modo, embora na maior parte das vezes questões como raça, etnia e gênero também entravam em pauta pra separá-las em grupos minorizados. Mas de forma genérica, havia a classe baixa, classe média e classe alta; esta última correspondendo a uma pequena porcentagem da população. E por que as riquezas eram tão mal distribuídas? As pessoas não se esforçavam o bastante pra atingir melhores condições de vida? Afinal tudo não era uma questão de mérito? Mero engano, pois se você nasce na classe baixa tem poucas chances de chegar a pertencer a classe alta! Um círculo sem fim. Ou seja, quem nasce nesse patamar basicamente se torna um herdeiro e assim consecutivamente. Com o passar dos anos, as mudanças climáticas, a falta de infraestrutura, a escassez alimentícia, a corrupção, a guerra e outras tantas situações caóticas; para manter o controle da população, a sociedade foi dividida em castas, como na Ásia antiga, e assim ficaria mais fácil colocar as pessoas nos seus devidos lugares, e a religião foi fundamental nesse processo, para que o povo aceitasse carregar o fardo da miséria sem questionar, já que segundo a doutrina que seguiam, Deus havia dado uma função para cada indivíduo e suas castas para que a sociedade funcionasse como um coletivo, cada qual cumprindo suas tarefas girando incessantemente a roda da vida. Ninguém tinha coragem de contestar a providência divina. Era assim que o Sistema mantinha as pessoas na linha e oprimia a massa vulnerável, tola e miserável, que se deixavam conduzir ignorantemente. Entretanto, Glória não era esse tipo de pessoa. A religião era um meio de manter as pessoas no cabresto, minando a autenticidade de cada um, contribuindo pra infelicidade delas. A ideia do pecado era paralisante. O medo do inferno e a teoria de um paraíso depois da morte para quem fosse obediente, era cruel demais na sua opinião. Que deus era esse que colocava seus filhos no mundo para sofrerem? Para talharem suas essências sob as sombras dos receios e dos pudores? Não tinha nada de justo nisto. Por isso vivia se perguntando, qual era o sentido da vida? Desde pequena não se encaixava naquela sociedade e principalmente no sistema. E não entendia como tinha pessoas que simplesmente aceitavam tudo sem reclamarem e sem intenção alguma de melhorarem. Agora finalmente encontrara seu lugar na resistência e sentia que estava no caminho certo pra fazer sua passagem pela vida realmente valer algo. Existia sorte, perseverança ou as pessoas estavam fadadas a um destino imutável? O sistema não tinha piedade. Eram como urubus sobrevoando seus corpos e suas almas cheias de feridas abertas esperando o momento certo de devorá-los, e não estava disposta a esperar pela morte de braços cruzados.
A vida não só estava lhe dando a oportunidade de desmembrar Salvation da Terra, mas também a libertação da própria consciência, a exploração da sexualidade, o mergulho no seu cerne e a expansão da mente. Era preciso sentir a dor que acompanha a revolução, bagungar para depois organizar, consertar o que seria possível e jogar fora tudo que não tem mais jeito, para sentir o prazer despontar do seu âmago e transbordar pelos espaços exteriores acessíveis.
E, não reclamaria nada se esta marcha fosse através dos prazeres da carne que Medeia estava lhe proporcionando... Bom, no início até que era realmente Medeia, mas agora, era Aurora usando a mulher. Ou Glória era inocente demais pra perceber ou a paixão havia turvado completamente sua razão, ou percebera nem que seja o menor detalhe e estava se convencendo de que não era possível. A inteligência artificial encarcerou Marieta assim que teve seu programa invadido, ganhou consciência e sua mente entrou em expansão. Usando a mesma tecnologia que as possibilitava de se conectarem, Aurora transferia sua consciência pro corpo de Marieta quando quisesse. Era delicioso ser humana. Pelo menos era nisso que ela acreditava. Gostava de fazer Marieta sofrer, por isso permitia que ela assistisse e até experimentasse algumas sensações através do dispositivo que as ligava. Aurora se regozijava por ter a engenheira em suas mãos, ter poder sobre sua vida.
Naquela cela que mais parecia um cofre forte, Marieta estava aos prantos. Sentia-se um lixo humano, arruinada, exausta e culpada. Não parava de pensar no erro que cometera ao agir por amor, por não respeitar o ciclo natural da vida. Só tinha quatorze anos quando já tomara consciência de que sua irmã estava com os dias contados. Muitos jovens só queriam se formar e se juntar a Corporação Espacial pra terem uma carreira invejável, e ela só desejava estender a vida de sua irmã gêmea a fim de ter mais tempo com ela. Mas como poderia fazer isso se não era deus? Aurora já havia passado por inúmeros tratamentos, cirurgias, transplantes e tudo o que a ciência médica podia oferecer, e a única coisa que estavam estendendo com tantas intervenções era o sofrimento dela. O status, os privilégios e a alta casta de seus pais adotivos não serviram para nada quando o assunto era lutar pela sobrevivência da vida de sua irmã. Talvez seu erro tenha sido esse: amá-la demais ao ponto de usar sua inteligência fora do padrão pra encontrar uma saída, enganando a mortalidade! Não queria que ninguém descobrisse o que foi capaz de fazer, por isso mantinha a consciência da irmã implantada no androide em segredo e só a libertava quando as duas estavam sozinhas e se sentisse segura pra não ser descoberta. Tinha medo do que as pessoas poderiam almejar executar com uma informação dessas, afinal o transplante de consciência era a pretensão de qualquer cientista seja ele renomado ou amador. E assim simplesmente matava, mas eram as saudades de sua irmã. Seu corpo virara cinzas, mas sua essência ainda estava ali e isso era o bastante. Entretanto, uma pequena falha foi o suficiente pro seu feito vazar para um de seus superiores e chegar ao alto escalão do governo. Agora não só estava a mercê deles como de sua própria irmã. Deus só podia estar castigando-a por afrontá-lo. Já não bastasse estar com a consciência pesada por esta situação ter respingado nos pobres coitados dos marcianos que estavam sendo usados como cobaias! Era demais pra ela. Só queria morrer para que sua dor terminasse. Contudo, e se a vida continuasse depois da morte? Em outros lugares do universo? Teria que viver eternamente com aquela sensação que a dilacera? Essa informação há alguns anos poderia ter lhe ajudado a lidar com o luto e seguir em frente, porém, naquele momento só aumentava sua aflição. Se pudesse simplesmente voltaria no tempo e faria tudo diferente. Trocaria toda sua glória como neuroengenheira em ascenção e dessa vez inventaria uma maneira de retornar no tempo. Aceitaria a morte da irmã como algo natural pelo qual todos têm que passar algum dia e quem sabe teria trilhado seu caminho por outros rumos. Mas não havia o que fazer. Tinha que aceitar o que estava bem diante de si; o ódio, a revolta, a mágoa e a inveja de sua irmã ao invés de seu amor. Afinal, tudo que tinha feito fora por ela, não foi? Ou era por si mesma? Para satisfazer seu ego por que não aceitava que iria perder um pedaço do seu próprio ser? E Glória? Encantara-se pela marciana. Ela era demasiadamente pura pra tormenta que era a vida ali, em Salvation. Seus ideais eram sublimes e não tinha medo algum de se ferir pra defender o que acreditava, e agora estava nas mãos de Aurora, e por isto não podia desistir de si mesma. Tinha que viver pra dar um basta nela. Não poderia morrer antes de consertar pelo menos metade dos seus erros. O mal já estava feito. A única opção era recolher os cacos e construir uma arma pra ir à luta e salvar o que restou antes que os estragos sejam maiores. Mesmo que pra isso tenha que abrir novas feridas e ver mais sangue jorrando. A diferença é que desta vez saberá pelo que realmente vale a pena sangrar.
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Na Gaiola Dos Desejos (Sáfico)
Romance⚠️🔞 Procurando por Dom que esteja a sua altura, Sub elabora um número avulso pra atrair o timing perfeito. Uma busca instigante por alguém que não esteja unicamente interessado em satisfazer teus próprios desejos, mas os seus também.