Conjecturas

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Para Glória, a ideia de ser grato por tudo, em meio às desgraças, com a justificativa de que deus sabe o que é melhor pra todos e se ele quer assim só resta aceitar, é uma das maiores atrocidades de que ela tem conhecimento, simplesmente porque isso faz com que pessoas miseráveis se conformem com suas vidas medíocres e não façam o que tem que ser feito pra atingirem seus objetivos. Ela mesma foi capaz de tudo pra estar onde está atualmente, mesmo que considere até improvável sua situação. Porque ela havia olhado pra além, pra um horizonte que estava escondido pela nebulosidade do futuro. Ela olhou e viu as consequências dos seus atos, pros frutos que seus sacrifícios deram. Não queria o mel de um paraíso prometido. Não só queria mas tinha certeza absoluta que merecia o mel que os prazeres da carne poderiam lhe oferecer.

Vislumbrou-se saindo de um pequeno mar artificial. Mergulhou fundo e emergiu das ondas renovada, com a alma lavada e o corpo beatificado. Sentiu-se como uma santa diante de uma deusa por puro mérito. A santa saiu da água e todos seus sentidos regozijaram com o contato dos seus pés na areia úmida. Caminhou sem pressa alguma em direção a deusa que repousava no seu trono, uma cama grande o suficiente para caber suas curvas avantajadas e seu cabelo afro que era a própria coroa, e todos seus desejos e fetiches... O único adorno naquele monumento era o fluido que escorria da sua fenda arreganhada; um convite para a santa, um símbolo dos portões do céu que ela deve adentrar sem pudores. A deusa dançava uma canção nupcial e seu corpo se remexia como uma serpente, talvez a mesma serpente que tentou a mulher no jardim do Éden e a libertou do jugo limitante da culpa. Seu pecado? Ser mulher, ter saído das entranhas das costelas de um homem e ser condenada a se sentir inferiorizada exatamente por isto, mais tarde perceber que é o útero de quem gera e dá a vida, e que por isso é temida.

Com um simples gesto de mão executado por um dedo que se movimenta implorando para que ela se aproxime, a deusa convida a santa para experimentar a doçura do que é divino, e a santa se achega de forma destemida. Mas não é a santa quem adora a deusa, é a deusa quem devota sua serva em gratidão por sua fé, sua crença e seu amor inabalável. Ignorando o cabelo embebido e o corpo pingando da santa após batizar-se nas águas mundanas, a deusa a deitou na maciez de seu leito e a idolatrou tomando seus pés calejados depois de enfrentar o caos do deserto e expurgou todo o mal acariciando-os e os benzeu depositando beijos para que eles merecidamente enfim descansassem na sombra fresca das suas mãos carinhosas e dos seus lábios afoitos.

A santa pendeu a cabeça exultada, entregue, serena e segura, assim que fascinou-se pela visão da deusa ajoelhada massageando, beijando e lambendo seus pés, dedo por dedo, sola por sola vagarosa e deleitosamente. O órgão molhado e quente agia ora lentamente ora avidamente lhe causando reações orgásticas. Aquilo sim era o paraíso, não no céu dos crentes, não na terra dos egoístas, mas em algum lugar acima dos terráqueos mas também dos marcianos, um lugar que só quem se liberta dos paradigmas pode alcançar. Este estado de plenitude infelizmente nem todos são capazes de tocar com suas asas atadas pelo medo de ultrapassarem o modelo padronizado que as religiões e a sociedade capitalista ditam. Glória não só conseguiu tocar como também venceu a si mesma, as suas emoções destrutivas, o seu ego, e fez despontar o seu eu superior, fez surgir a santa. E a deusa não só reconheceu seu esforço, como a recompensou por sua ousadia. A santa entendeu que não existe humanidade na humanidade em qualquer parte do universo, que todos estão do lado errado do céu e do lado justo do inferno, e que todos são deuses perdidos buscando encontrar um deus que está dentro de si mesmos. A deusa compreendeu que não existem vítimas nem algozes, apenas seres humanos numa busca incessante pela paz e pela liberdade, que em todos há um pouco de demônios e santos, virtudes e vicissitudes, heróis e vilões, belas e feras, monstros e caçadores, alguns se confundem, se misturam e se sobressaem. Vêm as circunstâncias e você tem que fazer uma escolha: qual você será hoje? Você luta ou você corre. Cada um defende sua própria verdade e constrói sua própria história. No final, quem é que pode julgar o que é certo e errado além da própria consciência? É função da santa viver e da deusa perdoar. Os humilhados serão exaltados e assim a santa aprendeu o valor do orgulho e a deusa da humildade. Um dia por cima, um dia por baixo, não importa de fato, o importante mesmo é que seja aprazível. Por isso a deusa queria adorar a santa, saber como é ser uma humana buscando a santidade e nesse meio termo cair inúmeras vezes em tentação. Ela chupava os dedos e lambia o vão entre eles com tanta vontade que era como se estivesse literalmente provando o sabor de ser uma humana falha num caminho errante. E quanto mais experimentava dessa mistura de temperos agridoces, mais queria conhecer novos sabores, além de texturas, sensações, sons, aromas, e mesmo assim não pareciam ser o bastante. Necessitava experenciar tudo o que a santa vivenciou até chegar ali. Como um ventre que expele a vida, fez ao contrário, enterrou sua fenda no símbolo da trajetória humana da santa. Iniciou pelos dedos pois temia não suportar tudo o que ela tinha pra lhe mostrar. A medida que os engolia, um sentimento ambíguo de dor mesclado com prazer tomava conta de si, mas como a divindade poderosa que era, aos poucos foi capaz de absorver mais daquela carne robusta e todo peso que fazia parte dela, mesmo que esse ato a arrombasse de uma maneira deleitosamente estranha. A santa se deu conta de que a deusa poderia não estar preparada pro que tinha a lhe oferecer ao mesmo tempo em que se sentia pequena demais pra sua grandiosidade. Sua materialização do pecado, a boceta, o ínfimo detalhe do que significa para ela ser humana, apertava seu membro, mas era um aperto prazeroso, molhado, sensível. Um encaixe divino. Um pé carnal adentrando parte do paraíso. Quando ele estava completamente dentro, a deusa de ébano começou a quicar desejosa por atingir o cume daquela troca de mensagens. O crespo macio de seu cabelo e os seios esculpidos pela mãe natureza balançavam no ritmo que se enterrava e o prazer rodeava as duas jogando em vice-versa, deusa e santa, santa e deusa. Olhos arregalados e espremidos de prazer, bocas abertas e lábios mordidos. Gemidos roucos que escapam das gargantas secas enquanto os corpos ficam encharcados de suor, e as vulvas se assemelham a potes cheios transbordando mel. E o urro animalesco anunciando que deusa também pode ser humana assim como a santa foi um dia. Nem deusas, nem santas, apenas humanas.

Depois de tomar consciência de tudo isso, Glória voltou a si, como um relâmpago que cai em um local específico. Piscou.

- ... Eu também não queria nada disso. A única coisa que eu queria era minha irmã comigo... Eles roubaram minha ideia e me obrigaram a executá-la e agora eu não tenho mais nada e eu também quero minha vingança - Marieta finalizou depois de contar tudo o que houve com Chun até o momento do adeus a sua irmã.

- Quem dirá que você está mesmo falando a verdade? Ham? - Jerônimo iria avançar na engenheira, mas Glória o segurou pelo ombro.

- Eu acredito nela.

Jerônimo a encarou com olhos assustados.

- Você ficou louca, Glória?

- Eu acredito e ponto final. E mesmo que não acreditasse, teríamos que arriscar, ela é a nossa única opção agora que a Aurora se foi - dizia isso olhando Marieta nos olhos e sem desviar. A engenheira sentiu-se levemente constrangida, mas sustentou o olhar. Graças à ela estava viva.

Jerônimo refletiu por um instante e suspirou fundo. Retirou a mão de Glória e se dirigiu pra sua cadeira, sentando-se em seguida.

- Certo. E qual é o seu plano?

Um pequeno sorriso brotou de Marieta e ela o compartilhou com Glória e esta, surpreendentemente lhe correspondeu de um jeito tão cúmplice que foi como se Glória tivesse enxergado sua alma, lido sua mente e compreendido seu coração, mas ela mal sabia que foi exatamente isso o que aconteceu. Glória havia finalmente abraçado sua vidência depois de tanto renegá-la e se dar mal, e não duvidaria mais dela. Dessa vez não viu o passado, mas o futuro, e apesar de não ser esplêndido, estava de bom tamanho pra ela.

Na Gaiola Dos Desejos (Sáfico) Onde histórias criam vida. Descubra agora