A ferro e fogo

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Os antigos costumavam dizer que a desgraça une as pessoas, e nesse caso mãe e filha foram contempladas. Marieta e Beatriz recuperaram a ligação que tinham cortado pela diferença de convicções aos longos dos anos. Ambas estavam sentadas na cama, uma ao lado da outra; Marieta enrolada em um cobertor que aquecia sua alma com os cabelos úmidos após um banho relaxante e uma xícara de chá fumegante esquentando suas mãos. Beatriz fizera questão de preparar a bebida com ervas calmantes, as preferidas de Marieta. A mulher mais velha estava com a cabeça escorada no ombro da filha e mesmo que não dissessem uma palavra depois de Beatriz ter lhe contado como Glória descobriu os planos de Aurora, e Marieta ter voltado pro seu corpo, elas se entendiam perfeitamente no silêncio, trocando energias de amor e compreensão. Beatriz tinha consciência de que não era perfeita, portanto não poderia julgar a filha, cujo o único pecado foi amar demais a irmã, um amor que se transformou numa doença, numa obsessão, e só as consequências de seus atos, lhe fizeram acordar depois da situação tomar proporções devastadoras. Uma réplica que a desnorteou de tal maneira que cabia somente à ela dar um basta. Por isso, assim que se sentiu satisfeita em suas assimilações, entendeu que precisava sentir menos e pensar mais. Já tinha seguido seu coração e se quebrado. Pela primeira vez precisava agir com a razão. Mas quando levantou-se e saiu andando automaticamente em direção do laboratório onde Aurora estava confinada, assemelhava-se mais a um pedaço de metal frio e cortante. Porém, não era porque tinha se congelado pra não sentir a dor que a acometera, e sim porque já havia sentido o suficiente e agora a única coisa que lhe restava era um vazio crônico. Sua mãe a seguia com o coração descompassado e com certa preocupação, afinal ao contrário da filha que vivera com essa situação nos últimos anos, ela só soubera dos fatos recentemente e tinha receio de qual seria o comportamento de Marieta depois dos fatos recentes.

Um longo suspirou escapou da engenheira assim que ficou diante da irmã e a religou.

Beatriz ficou aterrorizada com a ideia de entrar em contato com a filha falecida, bom, pelo menos era isso que achava até então.

Os olhos do androide se reviraram avaliando aonde estava e se perguntando por que não conseguia se mover.

- O que... O que você fez comigo sua maldita? - rosnou encarando Marieta, recordando-se dos últimos acontecimentos. Numa hora estava com Glória. Tinham se declarado e fizeram um amor esplêndido. Depois adormecera nos braços dela. Mas agora estava ali diante de Marieta e Beatriz. As duas pessoas que mais odiava na vida.

- Te desativei do pescoço pra baixo - Marieta falou sem emoção. - Não podia correr o risco de você usar a força contra mim novamente - esclareceu recordando-se de como ela a aprisionou.

- O que houve, onde está a Glória?

- Por que não se preocupa com você mesma?

- O que você fez com a Glória, porra!

- Nada. Foi ela quem fez com você. Foi ela quem te entregou pra mim e me libertou.

- Não... Não pode ser... Você só pode estar mentindo...

- E como você acha que eu escaparia sozinha?

- Não... Não é possível - negou-se, chorosa.

Marieta ficou surpresa com a reação da irmã. Ela amava mesmo Glória! Não estava fingindo!

- Se te conforta saber, ela não fez de propósito, mas até ela percebeu o quão insana você está e que precisa ser detida.

Alguns longos minutos de silêncio se sucederam e Aurora enfim se manifestou.

- E será você que me deterá?

Foi a vez de Marieta permanecer em um silêncio que só foi quebrado por Beatriz debulhando-se em lágrimas.

Na Gaiola Dos Desejos (Sáfico) Onde histórias criam vida. Descubra agora