Roleta-russa

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Chun estava sentada em volta de uma mesa redonda com um café matinal farto devaneando com os olhos perdidos. Um holograma lhe permitia estar diante de uma vista magnífica de uma montanha com uma floresta repleta de neve e um lago congelado. Uma experiência sensorial única, mas apesar do luxo que a rodeava, sua mente só conseguia focar na última conversa que tivera com seu pai. Estava tão vidrada que nem se deu conta de quando o patriarca subiu pela escada rolante até a cobertura e se sentou na sua frente.

- Algum problema? - perguntou enquanto o robô lhe servia uma xícara de chá com uma rosquinha doce. Quon anunciou que estava satisfeito por enquanto apenas com um gesto e o robô doméstico se afastou ficando a disposição.

Foi aí que Chun se deu conta de que estava diante de seu pai; o protagonista de seus pensamentos.

- Ah, não, por que a dúvida?
- ajeitou-se na cadeira.

- Como por quê? Parece que dormiu comigo.

- Não seja por isso: bom alvorecer, meu pai.

- Não seja irônica. Vamos, diga, qual o problema? Eu te conheço.

- Se me conhece tão bem, então deve saber o que eu tenho e o que eu acho sobre essa loucura.

Quon bebeu um gole do chá e comeu um pedaço da rosquinha com tranquilidade. Chun o encarava com uma indignação expectante. As vezes a frieza do pai a assustava.

- Não sei por qual motivo o estardalhaço. Era o que já deveríamos ter feito com esses miseráveis. Eles só nos dão despesas e dor de cabeça. Não precisamos mais deles. Temos os robôs para nos servir. Eles são ótimos operários porque não adoecem, não fazem fofoca, e são leais. Além do mais você tem toda razão. Já passou da hora de minerarmos Marte. Vamos fazer robôs pra cada trabalho pesado que houver e as IAs ficam por conta do serviço administrativo. Nós humanos viveremos com comodidade e o mais importante: teremos paz.

Em um súbito, Chun levantou-se dando um soco na mesa, espalhando as guloseimas.

- O que você quer fazer é um genocídio, caralho!

Quon estava com os olhos esbugalhados e o robô se aproximou com o intuito de defendê-lo do que havia sido programado para entender como ameaça a sua vida. Reagindo, com um gesto de pare, Quon lhe ordenou sem paciência alguma:

- Saia daqui seu monte de metal burro!

- Sim, senhor - o robô que já estava quase em cima de Chun, obedeceu e se foi. Era a isso que Quon estava se referindo. Podia extravasar suas emoções negativas nos robôs e eles não reclamariam.

Quon respirou fundo enquanto a filha o fixava bufando como um animal pronto pra atacar. Limpou a roupa suja e se colocou de pé como se isso o fizesse ficar na mesma altura que ela.

- Você é jovem demais para entender. Essas pessoas... Os marcianos, eles não são dignos de nossa misericórdia. São párias cheios de revolta e ingratidão. Merecem o destino que eu decidi pra eles.

Chun chutou a cadeira e foi até o pai.

- Você é deus por acaso?

Quon pôde sentir até mesmo a saliva dela em sua cara.

- Não, mas Ele fala comigo, como falava com meus ancestrais.

Chun soltou uma risada e rodopiou, incrédula.

- Não é possível que essa seja a vontade de Deus!

- Mas é. Só chegamos onde estamos hoje porque Ele sempre falou conosco. Você não entende, mas eu não sou um homem sem coração. Eu apenas tenho que expurgar a sujeira dessa raça imunda. Esses marcianos são descendentes dos mesmos terrenos covardes que foram contra as nações emergentes. Ainda tivemos a decência de abrigá-los e lhes darem trabalho pra que não morressem na sarjeta.

Na Gaiola Dos Desejos (Sáfico) Onde histórias criam vida. Descubra agora