Ciclope

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Um dos momentos mais importantes de um relacionamento amoroso é o de enfim conhecer os criadores e educadores da pessoa amada. Mas, neste caso em específico, Glória e Marieta não eram um casal, a relação delas era mais complicada do que um envolvimento monogâmico padrão. E, tinha Aurora no emaranhado dessa teia. Esta não conseguiu esboçar nenhuma reação. Não sabia como reagir a uma situação daquelas e mesmo que pudesse, não era capaz de se mexer. Glória não era mais aquela mulher impulsiva e inconsequente do início daquela história complexa. Toda colônia estava em suas mãos e qualquer atitude irresponsável poderia colocar tudo a perder então optou por esperar, observar mais para assim ter tempo de calcular seus próximos passos e agir com sabedoria.

- Olá, sou a Beatriz, mãe de Marieta - a mulher tomou a iniciativa e Aurora encarou Glória na esperança de que ela tivesse sangue frio para dissimular e não explodir como era esperado. A marciana correspondeu o olhar e nele pôde ler o desespero, a bomba perto de estourar.

Glória respirou fundo e apertou a mão que lhe era estendida.

- Glória, amiga da sua filha.

- Amiga, sei... - Beatriz repetiu com um ar irônico e desconfiado, ciente da bissexualidade de Marieta desde a adolescência e da qual não tinha nenhum preconceito, afinal a natureza do ser humano era profunda e extensa demais para se limitar em uma caixa com uma única possibilidade. - Fico feliz de saber que Marieta fez amizade em Salvation. Minha filha era muito reservada quando morava na terra, refugiando-se no laboratório onde passava a maior parte de seu tempo...

Glória percebeu o orgulho que Beatriz tinha de Marieta e isto a fez pensar se estava enganada sobre Medeia ou se as duas compartilhavam da perversidade e por isso se defendiam. Aurora atentou-se ao fato de que Beatriz falava de Marieta como se ela não estivesse presente. Por mais que estivesse consciente de que se Beatriz não tivesse as adotado, não teriam tido a vida confortável e luxuosa a qual foram privilegiadas, não conseguia sentir nenhum sentimento fraternal por ela, embora fosse grata pelo seu ato, mesmo que acreditasse que ela só fez isto para satisfazer o próprio ego, as usando para suprir seu lado maternal e amenizar a consciência pesada por ter nascido em berço de ouro realizando uma pequena caridade para duas bebês gêmeas conjugadas órfãs. Era claro que Marieta sempre fora a preferida e isso fez com que a surpresa fosse substituída por ódio em revê-la, relembrando todo passado em que era tratada apenas com pena, como um fardo que eram obrigadas a carregar.

- Ainda estou aqui, mamãe... - fingiu engolindo o asco. Precisava ser esperta o bastante pra se livrar daquela situação sem se prejudicar ainda mais.

Beatriz sorriu com suavidade e Aurora respondeu com um risinho falso.

- Você deve estar cansada da viagem - pontuou levando a mão até o braço da mulher de meia-idade - Vou te levar até o quarto dos hóspedes, assim você toma um banho e descansa enquanto eu preparo algo pra senhora comer.

Beatriz comoveu-se com a delicadeza e o respeito da filha, agindo como se elas não tivessem se desentendido na última vez em que se viram, há sete anos, desde que ela fixou residência em Salvation, e pegou na mão que segurava o seu ombro, trazendo-a pra si de forma saudosa e carinhosa, depositando um beijo logo em seguida. Aurora teve vontade de se esquivar enojada, mas precisava aguentar, não podia pôr seu teatro em risco, e ainda tinha que arrumar uma boa desculpa pra convencer Glória de que ainda era confiável.

- Não precisa, querida. Não quero atrapalhar sua noite, ademais eu jantei na nave e não sinto fome. Só quero um banho e cama. E você, Glória, - dirigiu-se a ela - espero ter outra oportunidade para nos conhecermos melhor. Até mais.

Arisca, Glória apenas assentiu. Acreditava que todos os terráqueos não suportavam os marcianos, pelo menos fora assim que aprendera, mas agora não tinha certeza disso, ou ela estaria apenas fingindo educação? Precisava ser cautelosa e descobrir o que Aurora pretendia com aquela encenação.

Na Gaiola Dos Desejos (Sáfico) Onde histórias criam vida. Descubra agora