Capítulo 6

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Parte 2

Quando os deuses foram esquecidos

[...]

"Um estranho festim de prazeres infames

E de carícias libertinas,

Com que anjos maus, nadando e lúbricos enxames,

Regozijam-se entre as cortinas;"

(Charles Baudelaire)


Capítulo 6

É fim de tarde na capital, e mais um navio havia ancorado no porto em Utis, cidade à outra margem do rio que corta Bnoot. Rapidamente dezenas de operários o cercaram, descarregando bagagens e mercadorias; caixotes, baús e sacas formavam boa parte da carga trazida pela tripulação, criando um fluxo de circulação tal qual um formigueiro. Os barulhos da cidade eram constantes num dia comum de muito trabalho. O sol se punha devagar, banhando a falésia e o porto com sua mancha alaranjada de luz e energia, deixando pessoas, objetos e construções com o mesmo tom ocre.

E muito acima daquele ponto, subindo a estrada em direção ao céu e bebendo um chá à beira da amurada do mirante do palácio se encontrava Annelise Thornew, princesa de Astorya. Portava, como de costume, a feição básica mas fechada de sempre, o atributo negativo que mais se comentava a seu respeito; uma mulher bela, diziam os trovadores, mas com uma carranca de espantar demônios.

O marido, Descendente e integrante do sacerdócio, havia adentrado novamente em seu isolamento espiritual primaveril, onde passava a estação retirado da sociedade em orações; sendo assim, ela estava novamente jogada à solidão forçada, ao ócio e à maldita língua afiada da corte. Comentava-se a existência de amantes e relações extra-conjugais, principalmente nesses períodos, mas nunca ousavam falar quando ela estava por perto. Claro, era irmã do rei. Tampouco podia acompanhar North e os outros homens nas saídas de caça ou reuniões, e a tratavam quase sempre como o adorno adorável e com obrigação de sorrir a quem aparecesse, principalmente durante as festas.

Agora, sentia-se praticamente hipnotizada observando aquele vai-e-vem dos homens lá embaixo, atravessando o porto e passando pelo navio. Infelizmente, como ponto negativo, havia a gritaria, batidas e todos barulhos que se poderia esperar de um porto. Ela, mesmo tão distante do lugar em si, ainda podia ouvir tudo aquilo, e também se incomodar com os mínimos resquícios desagradáveis dos sons.

Tirou os olhos dos plebeus lá embaixo ao perceber que agora havia passos e falas sendo entoados próximos de si. Dois de seus irmãos, North e Ingram, aparentemente recém-retornavam da última expedição de caça, ou simplesmente um passeio simples pelo vale. Ela nem sempre sabe dizer, e nem mesmo se atenta em perguntar muito. Mas pôde concluir que os percebia animados e quase energizados, sinal de que o que quer que fizeram esta tarde, fora produtivo.

— Imaginei que nós a veríamos aqui, bela irmã. Derek então ainda segue na sua peregrinação solitária de espírito? — North sorria de forma insolente; mas Annelise não se afetava mais, sequer movia um músculo da face perante as provocações do mais velho.

Baixou a xícara até a mesinha que fora montada para que ela passasse a tarde, e agora sim se levantou da cadeira. Para qualquer nobre, a demora de se levantar na presença do rei seria considerada ultrajante; Annelise sequer pensava nesse quesito. Também não respondeu oralmente à pergunta provocativa de North, direcionando os olhos escuros ao irmão mais novo. Desde que a rainha Andrena havia morrido, pouco antes de Ingram completar um ano de idade, Annelise foi quem se tornou praticamente sua figura materna. Principalmente considerando as madrastas que tiveram, que deixavam de lado os filhos da primeira esposa do rei. Também, provavelmente, Ingram era o único que presenciava qualquer tipo de sentimento de carinho ou compaixão vindos da princesa. Era um rapaz de aparência dócil e pouco bruta, diferente dos outros homens da família, e mesmo os olhos castanhos sendo iguais não possuíam a mesma energia.

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