Prólogo

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17 anos atrás...

Augusto Ferraz andava de um lado para o outro no corredor do único hospital de Lagoa dos Santos. O hospital municipal não era nada diferente da cidade onde residia, pequeno e longe de ter a infraestrutura de um hospital como o da capital, São Paulo. Mas seria nele que sua filha nasceria e onde sua esposa daria à luz. Lara e Letícia, seus dois amores, suas duas garotas que teriam a mesma inicial e teriam o seu amor. Ou ele achava isso.

Porque algo estava errado, ele não sabia dizer o que, mas podia sentir o tremor da antecipação correndo em suas veias. Ele sentia em seu sangue e ossos algo errado. Não o deixaram ver o parto de sua filha, quando avançou para entrar na sala de parto, a médica e sua amiga mais antiga, Giovana Lacerda o barrou na porta, com uma expressão neutra e disse que ele seria melhor se ficasse esperando do lado de fora.

Ele quis brigar, se forçar para dentro e questionar porque não poderia assistir ao parto. Mas Letícia o encarou com tanta dor no olhar, que ele não teve coragem de falar nada, apenas acenou com a cabeça antes de ver as portas se fecharem diante de si. Isso havia acontecido há cinco horas, há cinco longas e terríveis horas, ninguém sabia lhe dizer o que estava acontecendo, ninguém sabia lhe dizer se a filha tinha nascido, se a esposa estava bem ou se as duas estavam com problemas.

Mas ele confiava em Giovana, sua amiga era a melhor médica da região, dava aulas numa universidade federal próxima à Lagoa dos Santos, ela tinha experiência para lidar com as diversas situações dentro de uma sala de parto. Acima de tudo, ele confiava em Giovana, eles tinham sido amigos por uma vida inteira, crescendo e estudando juntos, brincando nas cachoeiras nos arredores da cidade. Tinham ido juntos para a faculdade, ela que apresentou Letícia, sua esposa, a ele. Ela era sua amiga e cupido, a responsável por juntar o casal Augusto e Letícia e agora, a responsável por trazer o fruto do amor deles para o mundo.

Contudo, nem toda a confiança sentida por Augusto naquele momento foi o suficiente para aplacar o sentimento de preocupação que lhe subia cada vez mais a cabeça. Ele se sentia perto de um precipício. Ele deveria ter entrado, deveria ter batido o pé e ficado ao lado de Letícia, deveria ter questionado o olhar neutro de Giovana, ela deveria estar feliz, certo? Ela seria madrinha e a responsável por trazer sua pequena Lara ao mundo. Ela deveria estar mais animada, não deveria?

Sentados nas cadeiras de espera do hospital, Francisca e Jorge Ferraz observavam o filho andar de um lado para o outro no corredor do hospital, agonia e o desespero tomando conta do lugar. Jorge apoiava a mão no ombro da esposa, tentando consolá-la, pois mesmo sem o anúncio de Giovana, ele sabia que havia algo errado, ele sabia, sentia em seu corpo, da mesma forma que conseguia sentir o coração batendo acelerado no peito. Enquanto Jorge forçava uma postura de tranquilidade e se empenhava em manter o desespero longe do peito e do rosto, sua esposa, Francisca não conseguia fazer o mesmo.

Francisca desconfiava da gravidez de Letícia desde o começo, quando foi acompanhá-la numa consulta de rotina e a viu trocar um olhar estranho com Giovana. As duas escondiam algo de Augusto, que em meio da nuvem de felicidade que o rodeava, não percebeu que sua esposa e amiga escondiam algo dele. Muitas suposições tomavam sua cabeça, dos mais diversos tipos e graus de importância. O filho foi para a capital estudar e voltou para casa com uma paulistana, formada em relações públicas. Minha namorada e assessora, mãe. Jorge podia chamar de implicância, mas ela nunca foi com a cara de Letícia, seu sonho era que o filho casasse com Giovana Lacerda, uma moça de berço e educação, bem diferente daquela que ele trouxe para casa.

Poucos meses depois, Letícia apareceu grávida e sua desconfiança apenas aumentou, principalmente por ver que ela escondia algo para o seu filho. Ela sabia que ela enganava seu filho, só não tinha como provar....

Ela ergueu a cabeça quando ouviu o som de passadas diferentes no corredor. Assim como ela, Jorge também e Augusto que parou de ficar andando de um lado para o outro e lhe causando dor de cabeça. Giovana apareceu no seu campo de visão, os ombros inclinados para frente, o rosto cansado e sem nenhum brilho no olhar.

Giovana escolheu a medicina sabendo que geralmente existem mais dias difíceis do que dias fáceis. Ela escolheu seu caminho sabendo que passaria mais dias num hospital e entre livros, estudando. Ela escolheu sabendo que precisaria dar más e boas notícias para as famílias. Mas ela não sabia que precisaria dar uma má notícia a Augusto e seus pais. Ela não sabia que seria incapaz de realizar seu trabalho. Não sabia que veria a vida de sua amiga escorregar entre seus dedos e não conseguir fazer nada. Ela não sabia que a culpa seria esmagadora. Ela não sabia que iria segurar a afilhada nos braços e não poder compartilhar a felicidade com Letícia.

Porque Letícia estava morta.

Ela morreu sob seus cuidados. Morreu sob sua vigilância. Morreu devido a sua incompetência.

Agora, ela precisaria olhar para seu amigo de infância e seus pais e dizer que falhou, dizer que não conseguiu lhe devolver uma família inteira. Dizer que conseguiu devolver apenas uma parte dela.

Ela nunca se esqueceria da cena, do momento que viu a vida abandonar o olhar de Letícia. Nunca iria esquecer que a amiga não teve a chance de segurar a filha nenhuma vez antes de partir. Respirando fundo, ajustou a postura e empurrou o queixo para cima, por mais difícil que fosse, o trataria como um paciente comum. Não pensou nele como seu amigo, não pensou em Letícia como sua amiga. Porém, mesmo tentando, ela não conseguiu se impedir de pensar em Lara como uma parte sua, ela seria ou deveria ser sua madrinha. Ela cumpriria o papel que havia sido designado por Letícia e Augusto, mesmo se ele não a quisesse mais perto dele ou de Lara.

— Augusto...

— Já posso entrar para ver a Letícia? Onde está Lara? — Augusto perguntou agitado, tentando encontrar qualquer sinal no rosto de Giovana. Augusto era um político, ele sabia ler as emoções das pessoas, sabia o que dizer e como dizer para conquistar um público. Mas agora, ele não conseguia ler nada da expressão de Giovana. Ela era a imagem clara de uma médica distante e imparcial.

— Augusto, Letícia teve uma hemorragia séria durante o parto. — ela iniciou com calma, vendo o rosto do amigo se transformando. — Fizemos tudo o que podíamos para salvar as duas, mas a perda de sangue foi muita intensa, não podemos fazer nada.

— O que isso quer dizer, Giovana? — ele sentiu seu pai se aproximando dele, uma mão sendo apoiada no seu ombro e em seguida, um aperto.

— A Letícia morreu, Augusto. Não conseguimos fazer nada para salvá-la. — ela se manteve firme, segurando as lágrimas e engolindo o bolo que se formava em sua garganta.

Não... — o sussurro de dor, a atingiu como uma faca. — Eu confiei em você! — a explosão veio um instante depois, Augusto ergueu a voz, a acusando por não ter feito seu trabalho, a acusando de ter deixado sua esposa morrer.

Giovana se manteve firme, aguentando as acusações, aguentando a explosão de Augusto. Ela não o culpava pela raiva. Ela já se culpava o suficiente pelos dois.

— E Lara? — Francisca perguntou, não parecendo nenhum pouco abalada pela notícia que a nora havia morrido.

— Ela está no berçário, as enfermeiras estão cuidando dela.

Augusto passou por ela como um furacão, indo em direção ao berçário. Ela precisava ver a filha, precisava ter certeza de que ela estava bem. Ele só confiaria nos seus próprios olhos. Ele alcançou o berçários em poucas passadas, aproximou o rosto do vidro, desesperado para encontrar o nome Lara Ferraz em qualquer ficha...

E encontrou, um pacotinho pequeno envolto de uma coberta rosa e uma toquinha tão pequena, poucos fios escuros escapando do tecido da toca. Tão pequena, tão linda... O coração de Augusto afundou pensando que eles seriam só eles dois. Como ele cuidaria dela?

Olhando para o pequeno pacotinho, ele sentiu medo. Medo de errar com ela, medo de algo acontecer, medo de ter sofrido qualquer sequela durante o parte, medo do mundo.

Ele sentiu tanto medo, que só conseguiu pensar em protegê-la.

E seria isso o que faria. 

Boa GarotaOnde histórias criam vida. Descubra agora