Capítulo Doze

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Lara Ferraz

Desde quando me entendo por gente, os almoços na casa dos meus avós são uma religião.

E uma tragédia.

É interessante como o crescimento e maturidade sempre nos fazem perceber a realidade das coisas. Apesar de sempre ter gostado de estar na casa dos meus avós, nos últimos anos, ela, a casa, vem se tornando aos poucos, porém constantemente, mais hostil à mim.

Lembro de ser pequena e contar os dias para o final de semana ou os dias que meu pai tinha algum compromisso político que necessitava de sua presença na capital ou outra cidade e o obrigavam a me deixar com meus avós. Era um momento mágico, correr no quintal que contornava a casa, com suas árvores frutíferas e bancos para descansar. Naquele quintal, com o vovô, eu era tudo. Rainha, princesa, policial, jornalista, cientista, Jean Grey, espiã... Mesmo que vovó nunca participasse por estar muito ocupada com o serviço doméstico e delegasse a função de me entreter para meu avô, ela fazia pão recheado e sanduíches com patê de frango, biscoitos e tortas doces, já que nunca gostei de bolo. Ela sorria para mim, com os olhos apertados e os dentes aparecendo, nem os pensamentos fugazes de achar vovó estranha por nunca correr e brincar comigo, incomodavam ou tiravam o brilho da infância acolhedora com meus avós.

Mas, em algum momento do meu processo de crescimento de criança para adolescente, e agora, de adolescente para adulta, o brilho desbotava. Até mesmo o da infância.

Relembrar dos sorrisos de vovó, aqueles dados em momentos ao redor da mesa quando eu e vovô sentávamos suados e cansados nas cadeiras, mas de mãos lavadas para comer, faz minha mente me pregar peças e ter outra visão do que eles eram. Ele, o sorriso, era esticado demais para ser espontâneo? Seus olhos se apertavam naturalmente ou ela forçava? Ela realmente não podia brincar comigo ou só estava muito ocupada? Ela só se preocupava com a minha alimentação ou controlava a quantidade de comida que eu comia?

Crescer é uma benção e uma tragédia, numa parte do tempo é bom crescer, ser independente e conquistar a tão sonhada autonomia. Na outra, ela é horrível. Seu corpo não é bom o suficiente, suas amizades parecem não gostar de você, seus gostos de criança parecem ridículos na adolescência, você parece ridículo na adolescência, seus hormônios te odeiam, seus seios crescem demais, mas sua bunda não cresce tanto. A sua barriga antes reta por causa de uma infância correndo na rua e na casa dos avós, ganha tamanho e dobrinhas. Ou elas sempre estiveram lá, mas agora, elas possuem uma importância diferente. A miopia se desenvolve e nenhum óculos parece bom o suficiente, o que deixa seu rosto estranho. Você se torna uma estranha para si e para os outros, vivendo numa constante de tentar se entender e, ao mesmo tempo, se encaixar no que esperam de você.

Sua avó, e única figura materna, parece discordar de todas as suas escolhas. Não gostar das suas roupas, dos seus hobbies, dos seus interesses de carreira...

Tudo parece errado. Contudo, em especial, você parece errado. A forma de andar, de falar, de se vestir... Porque se a sua vó fala que Direito ou Medicina é melhor que Letras, você acredita, afinal, ela te ama e quer o melhor para você. Se ela diz que o vestido preto é melhor que o verde, porque preto emagrece e você tá um pouco "cheinha", você acredita. Se diz que seu prato tem muita comida e você precisa comer menos e ser mais magra para ser bonita, você acredita.

Ela é sua figura materna, ela é sua avó, ela te ama, ela só quer o seu melhor, mesmo que precise ser dura para isso. Ela está certa, né?

Talvez, encarar tantas certezas, assuste. Por isso, uma casa amável se torna hostil. Mas, no fundo, será que nunca realmente foi assim?

Como eu, Augusto Ferraz não podia se livrar dos almoços religiosos na casa de sua mãe, Francisca Ferraz. Por isso, ele estacionou o carro na frente do portão da casa dos seus pais e meus avós, porém não saiu imediatamente. Meu pai estava visivelmente cansado, tendo feito um bate-volta em São Paulo, para ir a sede do partido, as olheiras fundas das poucas horas de sono se destacavam no rosto pálido. As sobrancelhas espessas, franzidas. Os olhos, caídos. A boca, apertada numa linha tensa. O cenho, franzido. E um mau humor, sentido de longe.

Boa GarotaOnde histórias criam vida. Descubra agora